Rita

1

Ouço batidas fracas na porta do apartamento. Estranho. Não espero ninguém. Felizmente não estava ouvindo música ou vendo TV, pois não teria ouvido. Apenas lia na cama. O interfone tampouco chegou a tocar. Quem poderia ser?

As batidas se repetem, mais aceleradas. Sem parar para acender a luz da sala, abro a porta. Rita se encontra à minha frente, calada. Uma figura escura de pouco mais de um metro, cuja silhueta é desenhada pela luz do hall.

De imediato, procuro por cortes, algum ferimento emergencial ou pista que justificasse a presença dela no edifício onde seu professor morava. Nada. Perfeitamente limpa. Poderia ter acabado de tomar banho. Usa um vestido preto.

– Meu Deus, Rita. Como você chegou aqui? Aliás, como sabe onde eu moro?

– …

– Alguém lhe deixou aqui na rua? Como você passou pela portaria?

– …

Tendo ignorado todas as minhas perguntas, ela me olha sério enquanto estica em minha direção uma folha que eu até então não tinha visto. Pego a folha e me viro para observá-la sob a luz do hall. Nela há um desenho feito com giz de cera. Somente duas cores: vermelho e preto.

Na parte direita da folha, em traços infantis, uma cabeça flutua. É uma cabeça de homem. Poderia ser a minha. Os olhos, talvez meus olhos, estão recheados de vermelho e parecem saltados, enquanto do pescoço pinga sangue. O corpo, um semiborrão igualmente vermelho, jaz separado da cabeça, num arranjo contorcido de braços e pernas que desafia a lógica. Acima do corpo, um carro preto. Do outro lado do desenho, uma menina também colorida de preto observa a cena à distância.

Três dias antes:

Me chamo Rodrigo. Sou professor de Português no Ensino Fundamental. Turmas de 2º e 3º anos. Ou seja, meus alunos têm, em média, oito de idade. A cada duas semanas, eu peço uma redação das crianças. Para escreverem na sala mesmo. Gostaria de sempre pedir tema livre, mas a maior parte se embola quando lhes é dada liberdade criativa. Ficam perguntando sobre o que afinal de contas é para escrever. É triste, porque seria justamente a hora de exercitarem sem amarras a imaginação. Paciência. Não quero, nem posso, esperar cinco horas para ver se um dos moleques se decide quanto ao que quer escrever: se é sobre o picolé que chupou com os avós no fim de semana ou sobre a catota que tirou do nariz e guardou num copo velho ao lado da cama.

Para evitar isso, eu lhes sugiro: “essa semana, quero que cada um escreva dez linhas sobre o animal que gostaria de ter”. Ou “meia página sobre tudo que fizeram no sábado”. Ou ainda, se estou me sentindo sádico, “descrevam minuciosamente o que cada membro da sua família fez hoje de manhã”, só para ver se lhes ensino a prestar atenção no mundo ao redor, ao invés de observarem unicamente as telas de seus celulares e tablets.

Os textos são cheios, em sua maioria, de erros. É claro. Meus alunos têm oito anos e estão escrevendo à mão, não no Word – não que isso salve o pescoço de todo adulto. Enfim, as crianças estão ali para aprender. Mesmo tão jovens, vejo talento em alguns. Seja para a escrita ou outros conhecimentos.

Tem um garoto, o Thyago, que é tão descritivo e preciso quando descreve seu quarto – o que acaba fazendo não importa o tema da redação –  que acho difícil não ir para Arquitetura, daqui a dez anos.

Tem uma menina, a Ana, que sempre dá um jeito de escrever sobre os games que tem jogado: o que é bom e o que é ruim em cada um deles; o que funciona ou, pelo contrário, nem deveria ter sido posto no jogo. Tudo de um modo muito perspicaz, em especial para a sua idade. Disse que aprende com seu pai, que é programador e com quem passa as noites jogando. Tenho certeza que de que ela se tornará uma game designer, também daqui a dez anos, ou até menos, se for precoce.

E tem a Rita.

Ela não é uma aluna de muito destaque. Nunca bagunçou muito, só um dia ou outro quando as amiguinhas mais próximas também estão alvoroçadas. Normal. Suas notas sempre ficaram ali na casa dos sete e meio, incluindo Português.

Talvez nas últimas semanas estivesse mais abatida, difícil notar no meio das quarenta e pouco crianças para quem dou aula, sem contar as das outras turmas. Poderia estar apenas gripada, ou com diarreia. Deus e minha mãe sabem que eu, quando tinha essa idade, praticamente não passava uma só semana sem, como meus colegas diziam, vomitar pela bunda.

Naquela semana eu tinha pedido que meus alunos escrevessem uma página inteira sobre os pais. Naquela noite, depois de assistir pela oitava vez o filme Deixe Ela Entrar – sempre paro para ver até o fim quando pega ele pela metade na TV a cabo –, deixei o som na rádio rock e preparei um café. Iria corrigir até tarde as dezenas de páginas  que discorriam repetidamente sobre a beleza e o carinho e o cansaço ao fim do dia da mãe trabalhadora e o cuidado e o rigor e o cansaço ao fim do dia do pai trabalhador. Ainda bem que meus alunos mirins escrevem redações de quinze linhas, não quinze páginas, como as dos meus ex-colegas da Faculdade de Letras.

Dentre tantas, somente quando li a redação de Rita foi que abri os olhos ao que poderia estar se passando. Quase caí da cadeira quando, numa grafia que inicialmente é pequenininha e bem-feita e aos poucos se torna maior e medonha, li as seguintes palavras:

“Meu nome é Rita. Hoje, Rodrigo, nosso professor querido de Português, pediu pra gente escrever sobre o nosso pai e a nossa mãe. Gosto muito de papai. Também gosto de mamãe. Mas não sei direito o que vou falar sobre eles. Só vou tentar ser o mais sincera possível, foi isso que ele pediu pra gente. Mamãe sempre cuidou tão bem de mim, faz comida todo dia pra gente. Papai sai correndo de manhã, mas depois que volta também brinca bastante com a gente. Os dois gostam de me dar lápis e canetas de muitas cores, é o que mais gosto de ganhar. PENA que os últimos desenhos que eu FIZ MAMÃE NÃO gostou, ela usou uma PALAVRA QUE EU ainda nunca tinha ouvido: falou QUE ERAM ALMADIÇOADOS. Não sabia o que ERA, COMECEI a CHORAR. Perguntei, MAMÃE, MAS O QUE É isso, porque a SENHORA NÃO GOSTOU do desenho? Ela falou de NOVO A MESMA PALavra, disse que eRAM ALMADIÇoadOS, e pegou todos, e rasgou. ELA RASGou TODoS MEUS DESENHOS. DEPOIS DISso, me DEIXOU DE CasTIGO e DISSE QuE EU Não IriA DESENHAR MAIS NUNCA. O QUE ela NÃO SABIA ERA QUE MEU PROFESSOR iria NOS dAR uma FOLHA E PEDIR PARa A GENTE ESCREVER NELA. AgoRA POSSO DESENHAr TUDO QUE quISER.”

O resto da folha e toda a parte externa eram cobertos de desenhos horríveis, que pareciam ter sido de fato desenhados pela Rita, se me lembro das flores e outras coisas que esperaria de uma menina da idade dela, desenhadas em papéis que ela já rabiscou em sala. A imaginação aqui estava além do conhecimento de mundo de uma criança tão nova: representações, até bem-feitas, de armas brancas, caveiras e ossos partidos, braços com seringa, corpos pendurados por cordas. Alguns instrumentos de tortura que pareciam genuinamente medievais e que eu só me lembrava de ter visto em alguns filmes sádicos italianos. O que estavam deixando aquela menina assistir?

Ainda estava para ver o pior. Quando pus a folha de lado para pensar no que fazer, vi que, ao contrário de todas as outras redações, essa tinha algo escrito no verso. Com o coração palpitando, li:

“MINHA MÃE MORREU. MEU PAI MORREU. MINHA MÃE VAI MORRER. MEU PAI VAI MORRER.

MINHA MÃE MORREU. MEU PAI MORREU. MINHA MÃE VAI MORRER. MEU PAI VAI MORRER.

MINHA MÃE MORREU. MEU PAI MORREU. MINHA MÃE VAI MORRER. MEU PAI VAI MORRER.

MINHA MÃE MORREU. MEU PAI MORREU. MINHA MÃE VAI MORRER. MEU PAI VAI MORRER.”

Na manhã seguinte, cheguei mais cedo, e, antes de entrar na sala para dar aula, passei na Secretaria para perguntar sobre o histórico de Rita e se eles souberam de qualquer relato quanto à sua família, se havia algum histórico de abuso ou mesmo se alguém tinha morrido. Nada.

Na sala de aula, estava em dúvida se Rita viria, e, caso viesse, como eu deveria agir. Nunca tinha visto algo parecido em oito anos dando aula para crianças dessa idade. Mesmo as que sofrem algum tipo de abuso físico ou, Deus as livre, sexual, não reagem desse modo. É sempre algo mais sutil, que reflete os sentimentos conflitantes da criança. Agora foi como se não houvesse sequer mais Rita ali. Parecia ser outra pessoa, mas quem, se ninguém entrou na sala durante o período em que eles escreviam?

Rita veio à aula, por fim. Foi a última, chegou atrasada. Talvez o pai ou a mãe tenham tido algum contratempo na hora de trazê-la. Não chamava a atenção de modo algum. Não estava particularmente feliz, mas tampouco parecia ter sido capaz de escrever o que eu lera na véspera. Preferi falar com ela ao fim da aula, a sós.

Quando tocou a sirene, e todos já saíam impacientes para o recreio, deixando para trás um torvelinho de mesas bagunçadas, cadernos abertos e papéis pisados, fiz sinal para Rita de que queria ter uma palavra com ela. As amiguinhas saíram fazendo aquela inconfundível expressão de “ih, se ferrou” que qualquer um faz quando seu colega é chamado pelo professor. Todos passamos por isso enquanto alunos. Nós, professores, temos o privilégio de presenciar essa cena também do outro lado da mesa. Assumo que tive medo de Rita fazer algo, talvez fugir. Ela, porém, veio em minha direção despreocupada.

– Oi, tio. – Seu tom de voz e sua expressão facial não denunciavam qualquer receio. Pelo contrário: ela sorria e parecia genuinamente curiosa. Decidi tatear a situação.

– Oi, Rita. Me diga, você está bem?

– Estou sim. Por quê? – Disse, arregalando os olhos.

– Só estou um pouco preocupado. Você se lembra do que escreveu ontem, quando pedi a vocês que fizessem uma redação?

– Não. Na verdade…não lembro de você ter pedido redação ontem.

– Como assim? – respondi, rindo – Mas é claro que pedi! Eu, você, a turma inteira estava aqui quando pedi que vocês escrevessem sobre seus pais.

– Que engraçado, tio. Só me lembro de você ficar ensinando conjugação, mais nada. Pretérito imperfeito, né? Depois fui brincar no recreio e aí tivemos aula de matemática.

– Não, não, não, eu não estou ficando louco. Sei o que aconteceu – disse mais para mim do que para ela, enquanto já procurava na minha mochila a folha. Tinha-a deixado separada, justamente para lhe apresentar e perguntar se tinha sido mesmo ela quem tinha escrito – Aqui, olha. Você fez isso ontem, mocinha.

– Mas, professor, essa folha está vazia.

Olhei para a página. De fato, estava em branco. Dos dois lados.

– Sim. Está vazia. Não é possível, deixa eu achar aqui… – revirei a mochila. De resto, tudo estava como devia estar. Nada faltando. Rita olhava para mim como se eu estivesse com problemas mentais. Havia pena no seu olhar, mas não muita; talvez mais atenção do que pena. – …é. Acho que perdi. Me desculpa, Rita. Devo ter confundido com o texto de outra pessoa. Pode sair para brincar, vai lá.

Passei cinco minutos revisando meu dia na cabeça. Me questionando se em algum momento tinha deixado a mochila à distância. Se algum aluno, de maldade ou não, poderia ter mexido, quem sabe um outro professor ou um funcionário. Não. Trouxe-a no carro e então a deixei sobre a mesa a manhã inteira, sob meu olhar. Não houve troca da folha. Olhei para o papel novamente, esperançoso, pode-se dizer, de que o que estava escrito ali ontem voltasse. Não ter que me preocupar com a própria sanidade seria talvez um peso a menos. Nada. Continuava em branco.

Naquela noite, refletindo sobre a situação, concluí que a única explicação lógica era que eu estava cansado na véspera e que a combinação tóxica do Slayer que tocava na rádio com o café mais o sono acumulado e juntando por fim o filme que tinha acabado de assistir tinha me causado uma dose de alucinação. Algo que uma mente acostumada a filmes de horror poderia criar para si a fim de quebrar a banalidade da rotina de um professor de escola primária. Dormi no sofá enquanto assistia a outro filme. Decidi na manhã seguinte deixar tudo para lá. Não queria coagir demais a menina sem que houvesse razão para isso, sem que eu soubesse que ela estava de fato envolvida.

Dois dias depois, quando voltei a dar aula para aquela turma, o lugar de Rita estava vazio.

2

Decidi ir à casa de Rita. Tinha buscado me convencer de que o que vira fazia três noites fora apenas criação da minha mente. No entanto, a ausência inexplicada dela, algo que nunca tinha acontecido antes, atinou minha curiosidade. Após a aula, conferi o endereço na Secretaria: um bairro próximo ao meu. Ótimo.

Era uma casa, não um apartamento. Isso facilita minha vida. É mais difícil evitar um eventual visitante indesejado quando se interage cara-a-cara. Bati à porta. Uma mulher com o cabelo da mesma cor de Rita, um tom marrom de madeira, me recebeu. Seus olhos estavam cansados.

– Boa tarde.

– Boa.

– Trabalho na Escola Jardim Verde. Sou professor de Rita. Você é a mãe?

– Sim, sou.

– Prazer. Meu nome é Rodrigo. Como você se chama?

– Adriana.

– Adriana, prazer. Posso entrar?

– O que você quer?

– Rita faltou na aula hoje. Tá tudo bem?

– Ela tá doente.

– Porque você não ligou na escola avisando? Ficamos preocupados.

– Tem razão. Deveria ter ligado, peço desculpas. Posso mandar depois o atestado. Era só isso que você queria?

– Não, espera. O que sua filha tem?

– Está gripada. De cama. É normal, a cada dois meses ela fica assim.

– Não posso ver como ela tá? Deixa eu ajudar.

Não esperei um convite. Me dei a liberdade de entrar, aproveitando o vão aberto da porta. Era uma casa razoavelmente grande, mas não muito mobiliada. Alguns quadros na sala, talvez de artistas locais, brinquedos espalhados no chão e no sofá. Adriana me olhava inquieta. Se me recebesse de modo mais adequado, pedindo para eu me sentar e ofertando um copo d’água, talvez me fizesse permanecer ainda mais tempo. Se me expulsasse, o que seria de seu direito, poderia aumentar minha suspeita. Aparentemente em dúvida, permaneceu ao lado da porta, sem falar nada.

– Vocês duas moram com mais alguém? Talvez seu marido?

– Sim…sim, moro. Com o Caio, meu marido, pai da Rita. Ele agora está trabalhando. – ela pareceu enfim ceder, passando a falar mais lentamente, e saindo de perto da porta.

– Hum. Entendo. O que ele faz?

– É advogado. Trabalha numa firma…pequenas causas. Nada muito sofisticado.

– Saquei. Deve estar melhor do que eu, de todo modo. – Adriana sorriu em resposta, mas só com a boca, não com os olhos. Busquei quebrar o gelo – Você também estudou no Jardim Verde? É muito comum ex-alunos matricularem seus filhos lá.

– Sim…estudei nele a vida inteira. Gostava do colégio. Digo, ainda gosto. Por isso matriculei Rita lá.

– Entendo. Por falar nela, onde fica o quarto?

– …nesse corredor, ao lado da cozinha. – ela apontou num movimento mínimo com a cabeça.

– Ah – observei a porta; percebi a burrice da minha pergunta, já que ela era a única que possuía um adesivo de My Little Pony – Posso entrar? – perguntei, já aproximando a mão da maçaneta.

– Não! Não. – ela deu um passo rápido e se pôs entre mim e a porta, dando um tapa forte na mão que eu tinha levantado.

– Calma. Não quero fazer nada. Só estou preocupado com Rita. Nós que lidamos com as crianças todo dia, aprendemos a reconhecer alguns sintomas…posso ver se é gripe mesmo ou algo mais sério.

– Você. Não. Vai. Entrar. – a cada palavra, se aproximava mais de mim. Deus, o que ela poderia estar escondendo?

– Por quê? Posso saber?

– Porque ela é minha filha e eu que decido quem entra em contato com ela ou não.

– Adriana. – desisti do sorriso e da farsa diplomática, dando um passo em sua direção. Nossos rostos estavam quase colados agora – Se você não me permitir ver como está a sua filha, posso entender que estão acontecendo maus tratos, e então quem sabe lhe den…

Nunca cheguei a concluir a ameaça. A porta do quarto se abriu. Ambos, assustados, nos viramos. Em pé no vão, Rita encarava firme a mãe. Se tinha me notado, eu não percebi.

Rita segurava em sua mão direita uma folha.

– Filha!

– Mamãe. – sua voz era neutra, quase artificial. – Fiz um desenho pra você. Porque te amo.

– Rita, onde você arranjou papel!? E o lápis? Porra! – Adriana gritava – Eu não deixei folha nenhuma no seu quarto, filha!

– Mamãe. Fiz um desenho pra você. Tome. É seu. – dava passinhos, ofertando o desenho à mãe.

Adriana hesitou durante alguns segundos. Por fim, aceitou o presente da filha. Observou-o só o tempo necessário para que os olhos processassem a imagem. Levantou então uma das mãos à boca, enquanto caía no chão do corredor. Começou a chorar, gemendo. Rita permaneceu na mesma posição. Eu parecia permanecer invisível para ela.

Enquanto Adriana gritava, retirei a folha de sua mão. Pensei que fosse ofertar resistência, não foi o caso. Era incapaz naquele momento de reagir ao que fosse.

No desenho, um homem enfiava uma faca no pescoço de uma mulher. A lâmina atravessava de um lado ao outro, da esquerda à direita, saindo num jorro de sangue. A boca da mulher se contorcia numa bagunça suja de dentes e língua. Uma menina de preto observava próxima, sem expressão. Sobre a cabeça da mulher, havia escrito: MAMÃE.

– Sai da minha casa! Agora! Sai!

Adriana gritava comigo, após ter recuperado forças para se levantar.

– Não é para ninguém ver isso! Sai!

– Mas, Adriana…

– Não quero saber! Fora! Fora, porra!

Ela me enxotou da casa aos urros enquanto destruía o desenho, rasgando a folha em metades e depois rasgando as metades em novas metades, até que tudo fosse fiapo. Ao longo de toda a cena, Rita permaneceu no local onde estava quando entregou o desenho à mãe. Antes que Adriana batesse a porta na minha cara, pude observar de relance seu corpo pequeno em pé no meio do corredor enquanto a mãe voltava a desabar sobre as tiras de papel rasgado, já rouca e com rosto inchado. Preferi não insistir. Entrei no carro e pensei no que faria.

Uma possibilidade seria entrar em contato com a polícia e fazer uma denúncia. Mas não creio que teria base. Nem quando conversei com Rita na escola nem hoje em sua casa constatei qualquer sinal de agressão. O único erro comprovável da mãe até agora foi, que eu saiba, não ter ligado para a escola por conta do que Rita está passando. Que, seja lá o que for, não é gripe. De todo modo, isso não justifica uma denúncia de maus tratos.

Poderia voltar a bater em sua casa, mas Adriana não me receberia. Resolvi, portanto, fazer o que um professor com tendências de investigador amador poderia fazer. Fui ao Arquivo do colégio.

Primeiro, conferi o histórico eletrônico de Rita. Praticamente nada. Que ficha corrida na escola uma menina de oito anos e três meses poderia ter? Umas seis faltas breves por doença desde que começou lá, no Maternal: um dado na faixa esperada. De resto, nada. Nenhum caso de agressão a colegas ou professores; nenhum surto; nenhuma crise asmática ou epiléptica em sala. Nothing, zero.

Estaria ela então começando a desenvolver sintomas de esquizofrenia, ou alguma psicose em geral? É possível, já tive dois alunos antes que pedi que entrassem em contato com um terapeuta infantil, mas o caso de Rita vai além. Nem a criança mais sádica que já conheci imaginou ou delirou a morte dos pais, não importa o quão abusivos eles tivessem sido. Talvez fosse algo hereditário? Hum. Adriana não parecia muito normal. Poderia ser algo que ela implantou na filha, ou quem sabe o pai. Já sei. Poderia dar uma olhada nos arquivos da mãe, já que ela também estudou aqui. Há. Vamos que vamos, Rodrigo.

Hum. Nossos arquivos iriam até tanto tempo atrás? O colégio tem quase um século, um bastião do bairro de Santana, mas não preciso chegar às origens. Adriana deve ter próximo dos quarenta. Teria saído do colégio há vinte e poucos anos, meio dos anos 90. Os dados ainda eram então registrados em papel. Rezei para que tenham digitalizado ao menos o acervo das últimas décadas. Fui conferir com meus amigos da Secretaria. Quebrei a cara, tudo ainda estava em papel. No entanto, podia conferir, se eu quisesse. Não sendo rinítico, o que me faria parar no hospital, era preciso apenas arregaçar as mangas e fuçar a papelada. Pedi a chave de acesso ao Arquivo, onde eu nunca tinha entrado.

Abri a porta, que ficava num canto do porão, e liguei a luz. Bolor e sujeira no chão, nas paredes e no teto, mas, sim, além disso, dois imensos armários de metal. As gavetas iam do A ao Z, separadas por gênero. Agradeci a ausência de problemas respiratórios aos céus e à criação pouco asseada que minha mãe me permitiu ter e, me aproximando do armário com a grande inscrição “Moças”, fui direto à gaveta com a letra A. Digo, a primeira delas. Todo o histórico anterior a 2000 devia estar ali, coletando pó, aguardando que o tempo terminasse de oxidar a celulose.

Puxei a gaveta. Deus. O chiado do metal enferrujado deve ter assustado todos os ratos do andar. Qual o sobrenome de Rita? Rita Carvalho Villas-Boas. Adriana Carvalho, portanto. Talvez haja mais de uma, vejamos. Corri os dedos pelas fichas de algumas crianças nascidas no meio do século passado, que àquela altura estavam bem longe de ser crianças, e que lá atrás tinham sido batizadas com infelicidades em forma de nome tais como Abetusa ou Acrimônia – quanto bullying devem ter sofrido, Jesus, mesmo que esse termo na época ainda estivesse para ser adotado. Logo cheguei ao batalhão das Adrianas. Adriana Abrão, Adriana Abreu, Adriana Baptista, Adriana Batista…pronto. Adriana Carvalho. Achei. E mais de uma. Quatro.

Foi fácil saber pela data de nascimento qual eu buscava. A Adriana Carvalho que estou investigando devia ter nascido no mínimo no meio dos anos 70, no máximo em 80 e pouco. Das quatro que passaram pelo Jardim Verde, a primeira é de 1952; as outras duas, dos anos 1990. Questão resolvida. Mesmo que tivesse errado grosseiramente na estimativa de idade, não poderia ser nenhuma das outras.

Sentei com a pasta para lê-la no chão, como tenho hábito de fazer sempre que quero ler e ninguém está olhando. Adriana Zaruchi Carvalho. Nascida em 1979. Trinta e oito anos. Meu chute foi preciso. Lá estava em anexo uma foto dela adolescente. Sim, era Adriana, mãe da Rita. Já tinha o olhar com que me recebeu hoje mais cedo; talvez menos inflamado, mas coberto de uma tristeza extraordinária para a idade. Analisei o histórico escolar. Nada de chamativo. Não perdeu ano algum; somente uma ou outra nota vermelha. Alguns 10 em Artes e Geografia; nenhum em Matemática. De resto, nenhum incidente. Nenhuma detenção ou ida à coordenação. Ela foi uma aluna tão mediana e pouco chamativa, para cima ou para baixo, quanto a filha indica que vai ser. Minha ideia investigativa brilhante me trouxe a um beco sem saída.

Joguei a pasta no chão para pensar melhor no que poderia estar acontecendo. Observava o teto mofado – vão deixar mesmo esse Arquivo se perder assim para o bolor? – quando algo me veio. Agitado, peguei novamente a pasta de Adriana e passei os olhos pelo histórico escolar. Só havia dados da 4ª série em diante. O que seria atualmente o 5º ano. Adriana mentiu para mim. Ela não estudou a vida inteira aqui.

Nesses arquivos eles registram a data de entrada no colégio? Sim. Achei. 1990. Ela já tinha dez anos completos. Onde estudou antes? Isso não consta. Eu teria como saber? Acho que só perguntando para ela. Ou fuçando os armários de sua casa atrás de xerox amareladas de matrículas dos anos 80, se é que ela guardou. Isso é insano. E onde me levaria afinal? Acho que estou enlouquecendo. Três dias que meu mundo não gira como devia.

Acreditava ter me posto em outro beco sem saída – minha única descoberta tinha sido que Adriana mentira, o que deveria na verdade já ter esperado –, quando, olhando a esmo pelo arquivo atrás de qualquer coisa que me ajudasse, notei algo. Os nomes dos pais dela. Roberto Messias Carvalho e Olga Zaruchi Carvalho. Nada chamativo neles em si, mas, ao lado direito de cada nome, constava um I.M. Peguei a pasta de outra Adriana para conferir. Ao lado dos nomes dos pais, não havia essas letras. Outra pasta ainda, para ter certeza. Também nada. Só na da Adriana Carvalho que estou investigando.

I.M. I.M. Hum. Como diz a música dos Talking Heads, qu’est-ce que c’est? Guardei as pastas na ordem em que estavam, fechei a gaveta e peguei meu celular. Sem sinal. Óbvio, estava no subsolo. Enquanto subia a escada, para poder googlar, lembrei o que significava I.M. antes que precisasse ver na Internet. Um convite de casamento que tinha recebido há alguns anos. A noiva entrou sem pai. Ao lado do nome dele, no convite, estavam lá as duas letras. I.M. In Memoriam.

Adriana já era órfã quando veio para o Jardim Verde, com dez anos.

Agradeci ao pessoal da Secretaria, que nem quis saber o que eu fora ver no Arquivo. Estavam ocupados demais com o Facebook. Entrei no meu carro e voltei para casa.

Já eram seis da tarde quando cheguei. Fiz um saudável jantar com linguiça e ovos, fritando tudo junto. Devidamente nutrido, fui ao melhor local para se pensar já inventado pela humanidade: o chuveiro. Liguei a ducha e pus a massa cinzenta para aquecer enquanto a água me refrescava.

Rita pareceu prever que seus pais iram morrer. Eu poderia chamar de prever ou de querer. Para tentar me manter numa linha menos macabra, vou me ater a prever. Já está suficientemente pesado dessa forma. Seguindo o pensamento. Rita parece ter previsto além disso que sua mãe iria morrer esfaqueada, por um homem. Seria eu quem mataria ela? Nunca machuquei nem um gato de rua. De onde Rita está tirando isso? Alguém está cochichando no ouvido dela? Se sim, quem? O capeta? Difícil pensar nesses termos extraterrenos; sou cético desde os dez anos de idade, quando parei de dar boa noite para Jesus antes de dormir.

Desisto. De vez em quando o melhor tipo de banho é aquele que é só um banho mesmo.

Me visto e vou para  cama ler um livro. Um romance policial escandinavo, para ver se absorvo algo da introspecção imaginativa daquele povo. Não consigo avançar um só parágrafo. Cada um deles cheira a morte e me lembra novamente do que está acontecendo com Rita. Absolutamente incapaz de me concentrar noutra coisa.

Porque Adriana reagiu daquela forma? Uma mãe pediria apoio, falaria com o colégio, com o professor. Ela já viu aquilo antes? Provável. Com Rita? E se passou pela mesma situação?

Ela é órfã. Está com medo de perder a filha? Não. Está com medo de morrer. Num clarão, compreendi: Adriana previu a morte dos pais. Então ficou órfã. Agora é a filha prevendo a morte dela.

A campainha toca. Meu coração para no teto. Calma, é besteira. Quem poderia ser?

No hall, Rita.

Com uma folha.

Um homem morto, sobre uma mancha vermelha. Sobre ele, um carro preto. À distância, uma menina de preto.

Ela veste preto enquanto me observa ficando branco.

Ponho-a no banco de trás do meu carro. Carro, aliás, que é um Corsa Preto. Como se minha adrenalina já não estivesse alta o suficiente.

Não tenho ideia de como ela veio parar na minha casa, ou de qualquer outro fato ligado à sua aparição à minha porta. Porém, preciso levá-la de volta para casa. Sua mãe não vai machucá-la; ela está com medo é do que pode acontecer consigo. Deve inclusive estar nervosa com o sumiço da filha. Alguém deve agir como adulto racional na história: serei eu.

Chegamos à sua casa. Para quem vê por fora, todas as luzes estão aparentemente apagadas. Adriana saiu? Talvez tenha ido procurar Rita. Decido que ficarei lá esperando com ela até que algum outro adulto chegue.

A porta da frente está aberta. Fico em dúvida quanto ao que pensar sobre isso. Adriana e o marido não tiveram a preocupação de fechar antes de sair? Talvez estejam nos esperando? Insisto em perguntar a Rita sobre como ela chegou na minha casa. Questiono também se foi ela quem saiu por último e deixou a porta aberta. Para variar, ela não responde. É incrível como uma criança pode ser fechada quando quer. Não sei com o que estou lidando aqui; a minha única certeza é de que já estou imerso demais para cogitar a possibilidade de sair sem marcas.

Ligo as luzes da sala. Vazio. Sinto o peso do silêncio.

Uma última chance a Rita de me ajudar:

– Rita, você acha que a sua mãe está aqui em casa? Preciso saber onde ela se encontra para ajudar vocês duas.

– …

Ok. Desisto. Estou sozinho, envolvido por conta própria até o pescoço nisso.

Grito para ver se Adriana está ali em algum aposento. Não ouço respostas. Vou com Rita até o seu quarto. Tudo está bagunçado: brinquedos, roupas e desenhos para cima, amontoados no chão. Rita grita, solta a minha mão e corre em direção aos seus pertences: vejo ela, com o semblante triste, juntando freneticamente os papéis picotados, buscando recompor o que foi rasgado.

Enquanto ela está em seu quarto, aproveito para vasculhar o resto da casa, acendendo as luzes dos aposentos à medida que entro. A casa está um pouco suja, talvez até bagunçada, mas nada particularmente chamativo. O choro de Rita diminui de volume à medida que me afasto. Encontro o quarto do casal. A porta está encostada, mas não fechada. Bato de levo com os dedos para ver se alguém está ali; sem resposta. Abro a porta e ligo a luz.

Roupas de criança estão espalhadas sobre a cama, na parte de baixo. Seis ou sete vestidos. Um deles tem manchas de sangue. Sobre o resto da cama, mais em cima, dois conjuntos adultos de roupas: um terno e uma combinação de blusa e saia floridas. Um conjunto ao lado do outro, arranjados à perfeição como se dois adultos que ali dormiam tivessem sido abduzidos e tudo que restara fossem as roupas do corpo. Os trajes tinham feição de velhos. Ambos estavam cobertos de manchas vermelhas, já secas. Algumas delas redondas, outras retilíneas, como resíduos de sangue que voou com violência. Entre o par de vestimentas, uma foto sépia. Nela, um casal sorria com uma menina no meio.

Com uma tesoura ou faca, os olhos do casal tinham sido cortados. O sorriso da criança, rasgado.

Só nesse momento, notei que o choro de Rita parou.

Volto correndo a seu quarto. Flagro Adriana sobre Rita. Com uma das mãos, tampa a boca da filha enquanto com a outra segura uma faca. A menina resiste, se contorcendo e tentando gritar, mas tudo que emite é abafado.

– Adriana!

Ambas me olham. A mãe tem desespero nos olhos.

3

Adriana se levantou, mantendo o olhar fixo em mim. Segurava Rita junto a si com uma das mãos, que também tapava a boca da filha. Ela foi seguindo com cuidado a parede, me obrigando com a sua faca a manter distância. Quando enfim chegou à porta por onde eu há pouco tinha entrado, gritou:

– Fique aí! Sem sair!

Sua expressão era perturbada. Se na minha visita anterior, ela já demonstrava temor, agora se tornara um verdadeiro animal, desesperado e capaz de tudo para manter a própria vida. Acredito que só uma última fagulha de humanidade a impedia de concretizar o que estava muito próxima de fazer.

– Adriana, me escuta. Não faça isso. Você não sabe…

– O quê? Vai dizer que não sei o que estou fazendo? Sei muito bem.

– Não, você não sabe. Escuta, eu entendo o que aconteceu com você. Sei que você é órfã.

Antes mesmo que eu tivesse terminado de pronunciar aquela palavra maldita, órfã, o seu rosto já tinha se contraído. Os seus olhos, antes apenas vermelhos de desespero, tornaram-se também marejados. Adriana chorava, como deve ter tanto feito na escola Jardim Verde, todas as vezes em que seus colegas escreviam antes da primeira aula aquelas quatro letras em sua carteira, antes que ela chegasse e, ao ver o que tinha sido feito, pudesse apenas então se sentar e engolir a raiva e as lágrimas – sua vontade, em cada um daqueles dias, era de não ficar ali, era de fugir para sempre, de viajar para uma terra onde ninguém conhecesse o seu passado. Era essa mesma Adriana do passado que chorava agora à minha frente.

– Como você sabe? Você era um deles? Você estava lá? Estava? Estava, não, estava? No meio de toda aquela turma, que tanto me aporrinhou, tanto me encheu o saco, tanto fez de tudo para que eu nenhum dia esquecesse que meus pais não estavam mais vivos.

– Adriana… – dava passos aos poucos, receoso do que ela poderia fazer consigo, ou pior, com a filha, que ainda estava à sua frente, impossibilitada por uma das mãos de Adriana de se expressar. Tudo que restava a Rita era arregalar os olhos e mirar em volta, buscando entender o que acontecera com sua mãe.

– Sim…você estava ali, no meio de todos. Mas agora sei o que fazer. Não vou deixar a minha filha passar pelo que passei. Não deixarei ela perder cada noite de sono, como perdi, repassando contra a vontade todos os eventos do dia e lembrando à força de cada momento em que aquela palavra suja foi dita. Aqui e agora, cuidarei para que ela tenha uma vida muito mais tranquila do que a minha. Fazendo com que ela vá dessa para outra.

Gritei “Adriana, NÃO!” me arremessando em sua direção, disposto a fazer de tudo para impedí-la. Não a alcancei a tempo. Um jorro fez voar sangue em minha direção, em meus olhos. Não conseguia enxergar nada. Gastei um tempo limpando o rosto com as minhas mangas, desesperado para que pudesse ver algo. Até que pude enfim abrir os olhos.

– Mamãe!

Adriana estava no chão, a menos de um metro de mim. Tanto seu corpo como o de Rita estavam ensanguentados. Impossível saber de imediato o que acontecera. Enquanto a menina permanecia em pé, gritando pela mãe, me abaixei para retirar a faca das mãos de Adriana, que gemia algo incompreensível, baixinho. Ao ter a lâmina em minhas mãos, notei que ela estava limpa. Aquela faca não tinha cortado ninguém.

Em meu desespero não notara que havia outra pessoa no quarto. Imóvel e camuflado pela escuridão do corredor mal-iluminado, não percebi o volume que preenchia no vão da porta. Era um homem que também tinha uma faca em mãos. Essa sim, reluzindo vermelha.

– …Caio?

Ele assentiu com a cabeça. Finalmente, se abaixou e abraçou a filha, que parecia estar catatônica.

– Desculpa, filha. Não notei antes tudo que estava acontecendo. Precisei lhe salvar de mamãe do pior jeito…agora somos só nós dois. Ficaremos bem, filha. Prometo.

Processei aos poucos tudo que tinha acontecido, observando a figura daquele pai, agora enfim na luz do quarto, abraçando a filha, enquanto a mulher que ele recém tivera que matar jazia deitada. Duas pessoas testemunhavam a cena de carinho entre pai e filha: um vivo e uma morta.

Dois dias após, reencontrei pai e filha no velório. Você até acha que cada evento desses será único. Você talvez até deseje que o seu seja o mais único de todos. Não passa de uma ilusão. Todos são iguais. Muita gente de preto, um clima de merda, alguns amigos e outras tantas pessoas que você mal conhece, todas dizendo que lamentam por tudo. Os momentos antes da morte, estes sim é que são únicos. Quem está presente jamais esquece.

Caio foi inocentado da acusação de feminicídio por um júri popular. Antes disso, tiveram que ouvir testemunhos: meu, do próprio Caio, da Rita. O advogado contratado por Caio fez uma defesa contundente de como o cliente agiu apenas em prol da vida da própria filha. O momento que todos, defesa e acusação, aguardavam foi quando ele chamou Rita para dar seu depoimento. Mesmo que este fosse incompleto, abalado pela emoção e pela pouca idade da testemunha, era essencial, pois ninguém, literalmente, estivera mais próximo da mãe em seus últimos momentos. Três dos jurados ao fim precisaram limpar suas lágrimas, enquanto uma senhora não parou de repetir um só instante o sinal da cruz.

Nunca fui capaz de me distanciar de Rita e Caio. Além de ainda tê-la como aluna quando ela foi capaz de voltar às aulas, visitava-os ao menos uma vez por mês. Passamos os Natais seguintes juntos, já que eu gostava de preparar a ceia – tradicionalmente quem fazia isso no lar deles sempre fora Adriana – e não tinha para quem fazer isso. Rita, após o choque inicial, pareceu se recuperar rapidamente. O psicólogo infantil com quem fazia acompanhamento relatou a Caio que a filha, quando falava da mãe, sempre o fazia lembrando-se dos momentos ternos entre as duas. Ao fim, sua memória parece ter apagado a maior parte do que não valia mesmo a pena lembrar. Os desenhos também tinham parado, ao que tudo indicava.

Foram dois bons anos assim, até que o acidente premeditado um dia pela filha finalmente veio. Voltando da feira, já perto de casa, Caio se distraiu, estava com pressa, talvez estivesse apertado, ou com saudades da filha, não sei. Atravessou a rua sem olhar. Foi atropelado por um carro preto, enquanto Rita observava tudo da janela.

Só naquele momento me recordei do desenho do carro preto. Do homem ensanguentado. Da menina que assistia à distância.

Talvez tudo estivesse escrito e todo o carinho e atenção do mundo por parte de Caio não seriam capazes de alterar o seu destino. Talvez seja assim que as coisas funcionem.

Me perguntei várias vezes desde então se toda a tragédia não foi causada pela existência em si dos desenhos. Caio mataria Adriana e então seria atropelado se não existissem a princípio os desenhos de Rita? O que foi causa e o que foi consequência? Os desenhos foram a motivação original ou mera previsão inocente do futuro? Penso que jamais saberei.

Não tinha como deixar Rita abandonada. Tendo sido nos últimos dois anos a pessoa mais próxima da família, e estando em idade legal, adotei-a.

Algumas noites, acordava assustado, pensando em tudo que tinha acontecido. Se Rita em algum nível sabia, se ela podia ter sido manipuladora a esse ponto. Me via subitamente entendendo Adriana: como se proteger de alguém que você ama e ao mesmo tempo prevê sua morte? Seria dar cabo daquele problema a única saída? Meu Deus, isso jamais poderia ser pensado por um pai ou mãe.

Nesses momentos, quando minha mente era incapaz de dissipar esse raciocínio friamente lógico, eu batia em sua porta perguntando se estava tudo bem. Todas as vezes, em pouco tempo, ela me respondia, dizendo que sim, que agradecia por eu tê-la recebido, e que me amava como um pai, enquanto os dois se abraçavam.

Assim se seguiu até que Rita fizesse quinze anos. Eu já não dava mais aula no Jardim Verde. Tinha ido para uma escola onde me pagavam melhor. Em seu aniversário, dei um jeito em relação ao rodízio de aulas para permanecer em casa, para que pudesse passar todo o dia do aniversário da minha filha junto a ela.

Abri às sete da manhã a sua porta segurando seu presente, um notebook novo que tinha comprado de fora.

– Filha, parabéns! Olha o que trouxe…

Esperava-a encontrar já levantada, como era seu costume, uma adolescente que nunca gostou de ficar até tarde na cama. Naquele dia, entretanto, se escondia de corpo inteiro embaixo dos lençóis. Era uma manhã quente, não entendi. Estaria doente?

– Filha, está tudo bem?

Puxei o lençol para poder ver seu rosto. Estava inchado de lágrimas. Perguntei, já nervoso, o que tinha acontecido. Ela, sem dizer nada, apenas gesticulou com a cabeça em direção ao outro lado do quarto. Nada tinha ali, só uma parede. Sem entender, dei a volta na cama.

No chão, havia uma folha, desenhada com o traço inconfundível de Rita, que eu conhecia há oito anos.

Abaixei-me para ver melhor o que estava desenhado enquanto temores represados transbordavam, anos esquecidos vindo à tona como uma enchente incontrolável.

No papel, havia uma janela por onde se via a lua. Um homem tremendo de medo estrangulava uma moça deitada. Moça cujos olhos saltavam para fora como os de uma velha e puída boneca de pano. As feições eram claras e reconhecíveis. Eu e Rita.