O Jardim e a Criança

Desde que existem o dia e a noite, em cada manhã Ele se senta em seu trono, nele permanecendo até o pôr-do-sol.

Quatro portais de pedra alinhados com as antigas direções cardeais romanas dão acesso ao jardim. Sobre cada um dos portais, corvos de obsidiana vigiam o mundo, metade olhando para fora, metade para dentro. Após os portais, pontes de mármore arqueadas sobre o lago circular, que envolve e dá vida ao jardim, levam ao centro. Nele, quinze pilares claros, tão altos que não é possível se enxergar seus topos a partir do chão, circundam o trono. Construído em puro alabastro, o trono é o objeto mais branco que se pode encontrar, um sol terreno que rivaliza com a sua contraparte astral em fulgor.

Aos pés do trono, um mar de flores extraídas de cada continente, sobretudo begônias, lírios e crisântemos, refletem a luz em direções opacas durante todo o período em que Ele lá se encontra. De vez em quando, quase nunca mais do que uma vez por dia, Ele retira o botão de alguma das flores mais próximas ao trono, pedindo à criança seguinte apenas que aguarde um pouco enquanto Ele observa as pétalas despencarem.

Durante cada um dos dias, da alvorada ao ocaso, Ele recebe crianças em seu colo: uma menina de cinco anos que, adormecida numa rede, sonha em Bogotá; um garoto de oito em coma induzido numa UTI em Kobe; dois gêmeos que pisaram juntos numa mina em uma praia em Myanmar. Ele não faz distinção entre aqueles que fora daqui são tidos como vivos ou como mortos. Esta dicotomia interessa somente àqueles incapazes de ver que a inconsciência de cada noite é um ensaio para o apagar final. Para quem pisa no jardim e observa o céu, tudo lá fora está congelado para sempre no limbo entre sono e vigília.

As crianças vêm aqui tirar dúvidas sobre o mundo de fora. As mais afoitas perguntam sobre seu futuro. As mais tímidas, sobre seus pais. Algumas acariciam Seus chifres com curiosidade enquanto tentam articular frases completas. Outras apenas gargalham observando Seu focinho, distraídas demais com o formato das narinas. Com essas, Ele apenas ri de volta, lhes fazendo cócegas, o que lhes faz rir mais ainda.

Uma criança ou outra, mais propensa a desafios, Lhe provoca. Ele instintivamente muda o semblante numa pantomima de quem finge estar insultado.

“Minha mãe disse que não é para falar com estranhos.”

“Mas quem disse que eu sou estranho?”

“Você parece estranho.”

“Por que diz isso? Pela minha aparência?”

“Não. Sua aparência não me incomoda. Eu até gosto. Mas você é um estranho porque nunca te vi antes.”

“Não sou um estranho, e vou lhe provar.” Aproximando o rosto escamoso do do menino, que sorri sentindo nas bochechas o ar quente que Ele emana, prossegue: “Estive com você desde que nasceu. E com seus pais desde que nasceram. E com os pais deles também. Tudo vi. E por isso estou aqui falando com você agora.”

Depositando o garoto com carinho aos pés do trono, Ele recolhe agora um outro menino sem um dos braços, que fala baixo e para dentro. Antes que a primeira frase fosse concluída, o primeiro menino já está à beira do lago, feliz e prestes a saltar, nu como todas as crianças do jardim estão desde que aqui chegam.

Sua maior diversão consiste em ouvir o que cada criança tem a perguntar (toda criança sempre tem muito a perguntar) e responder-lhe então do modo mais inesperado que é capaz. Nos primeiros séculos, ainda insistia em retorquir alguma pergunta que acreditava despropositada com uma resposta obscena ou asquerosa. Percebeu que dessa maneira envergonhava o suposto despropósito das perguntas (pouquíssimas o são de fato) com o despropósito maior ainda de suas respostas: a obscenidade e o asco expõem todo seu ridículo frente a alguém que não os percebe.

Ele permanece há milênios nesse arranjo, que por bastante tempo Lhe tem agradado. Alteram-se as línguas das crianças (e Ele sempre teve prazer em ouvir e falar todas), alteram-se as cores de pele que mais aparecem (e Sua própria pele sempre teve ao mesmo tempo todas as cores), alteram-se as brincadeiras que as crianças trazem ao jardim (e Ele sempre gostou de observar a todas, sentado em Seu trono a cantarolar melodias que não foram lembradas pelos povos).

As perguntas, no entanto, essas nunca se alteram. Nem o sono, e tampouco a morte.

Um dia, impossível dizer quantos antes já tinham se passado, uma menina acorda no jardim. Banal dentre todas em aparência, segue à fila junto com as outras crianças que chegaram pouco antes ou depois, se mantendo todo o tempo calada. Não entende o que as outras dizem, nem o que seus gestos significam. Não chega a ficar assustada; simplesmente percebe que de nada adianta interagir, e se resigna.

Ao chegar a sua vez, caminha sem pressa rumo ao trono, e espera ser erguida por Ele até Seu colo. Lá, conserva-se imóvel, observando com curiosidade cada reentrância dos ossos ao redor de Seus olhos, cada ponta de Seus caninos.

“Não vai me perguntar nada?”

“Não.”

“Por que não?”

“Porque não acredito em Você.”

“Mas Eu não estou à sua frente?”

“Sim. Mas não é porque é visível que é real.”

“Mas você não está sentada sobre Mim?”

“Sim. Mas não é porque é sólido que é real.”

“Mas você não está se queimando com essas chamas que faço agora sair do meu corpo com violência?”

“Sim. Mas não é porque machuca que é real.”

“E se Eu lhe obrigar a permanecer aqui, longe para sempre de tudo que você amou, você ficaria assustada?”

“Sim. Mas não é porque causa medo que é real.”

“E o que então poderia me tornar real?”

Ela pede que Ele lhe erga até Seu ouvido. Ele o faz lentamente, olhando-a nos olhos enquanto a levanta. Quando pronta, ela cobre as laterais do rosto com as duas mãos, e sussurra.

O Seu rosto se altera numa expressão que ninguém jamais testemunhará novamente. As pequenas ondas do lago paralisam-se em pleno fluir, e todas as crianças do jardim se viram para o centro.

Pela primeira vez, Ele se levanta do trono antes que o dia finde.

“Você sabe agora tudo que eu sempre precisei saber. O jardim é seu. Tome meu lugar, e não me procure mais.”

Põe a menina no trono, cujos pés suas perninhas mal alcançam. Olha em volta como se apenas agora notasse a beleza do local, e se vai.

A Saga de Sal – Parte 2

P. Sal se recorda de uma vez ter ouvido dizer que pensar em três motivos de gratidão antes de dormir trazia felicidade a longo prazo. Nesse momento ele já era grato por: 1 – ser aproximado na pista de dança, onde suar era esperado; 2 – o café da manhã mineiro não raro levar mais de 12 horas, envolta em petiscares demais e interesse pelo status de suas instituições mafiosas de menos. O 3 bem poderia ser a falta de faro de seus colegas, mas Sal preferiu deixar a lacuna. Dormir não parecia uma realidade próxima.
Dissimulando sua posição de combate numa versão lenta de lindy hop, a mente de Sal trotava por possíveis desculpas. Sua memória caiu subitamente em Bruna, antiga roomate, depois companheira de natação, depois flerte, depois ex-flerte com particular desgosto pela tendência de Sal de levar a cabo interrogativas relevantes com mentiras irrelevantes bem amarradas e desinteressantes. “A Bruna teve um filho. Eu vim pro bairro para visitá-la, mas acabou que ela precisou ir ver a sogra, e fiquei pela região sem ter o que fazer”. Seu colega de truco reajusta o sombreiro, num murmuro de concordância aturdida. “Mas é bom vê-los aqui!”, Sal emenda no hiato, guardando seu baralho. “Isso pede um brinde!”, e saí num rápido giro rumo ao bar. Uma senhora de plumas na cabeça em décimos de segundo consegue retirar seu copo recém-preenchido de ponche do caminho. Ela estufa seu peito, orgulhosa do feito, totalmente ignorante de que em certa de uma hora e meia, estaria sendo espancada por uma prostituta eslovaca no beco atrás do palacete.
L. Refletindo bem, tudo indo certo até agora, pensa Sal. Refletindo bem, tudo que esses truqueiros sabem é usar uma derrota imprevista para um zap malandro como desculpa para mais uma dosezinha de tequila barata e mais uma carreirinha de Painus Polvus, a famosa cocaína amarelinha exportada por São Paulo, pensa Sal. Refletindo bem, tudo que preciso agora é convencer esse barman a me servir três doses de Salza pelo preço de uma, pois esse é todo o dinheiro que terei, pensa Sal. Refletindo bem, tudo que é necessário é roubar aquela garrafa cheinha de Salza de trás do balcão enquanto o barman se distrai com o milésimo ponche que a senhora de plumas na cabeça pede, pensa Sal. Refletindo bem, tudo que queria fazer esta noite pode se resolver com dois truqueiros borrachos de Salza para eu finalmente descobrir a senha da sala secreta do Sete de Copas, pensa Sal. Refletindo bem, três truqueiros borrachos, se meu fígado trabalhar pouco e a língua, demais. Pensa Sal.
P. Refletindo bem, felizmente, era a única coisa que o espelho atrás do bar não estava fazendo. Permitindo os olhos de Sal percorrerem suas possibilidades bem refletidas, alheios às costas do barman, envolvidas em algum drinque desnecessariamente complexo. Sal busca as moedas em seu bolso, preparando-se para a barganha. Seus dedos, porém, encontram apenas uns fiapos e um furo do tamanho de uma cereja. Pausa, uma semibreve. Sal resolve tocar de ouvido. Contornando o balcão até uma abertura, desliza para trás do bar e se aproxima a uma dupla de jovens quase esfarrapados – se por fantasia ou necessidade, difícil antecipar -, um deles girando algumas moedas nos dedos. “O que vai ser, queridos?”, Sal lança. Alcança sob o bar duas Pilsner Urquell e pega em troca o troco. Começa rumo a um engravatado estendendo uma nota polpuda ao bar – e à garrafa de Salza próxima dele – quando o barman dá por sua presença e o interpela. “O chefe mandou que eu viesse ajudar”, Sal fala. “O chefe aqui sou eu”, Sal escuta. Desafino no improviso. 5, 6, 7, 8. Sua mão esquerda alcança o baralho no casaco, corta com destreza canhota o maço, e estende em um floreio uma série de cartas escondidas. “Escolhe uma carta”, Sal tenta.
L. O barman pisca incrédulo para o leque de cartas na mão de Sal, dando apenas rápidas olhadas em direção ao salão atrás de saber qual dos funcionários estaria por trás daquilo. “Chefe, chegou agora o momento que vai mudar sua vida. Se você retirar daqui da minha mão uma carta de paus ou espadas, você, eu e dois amigos bebemos cada um um shot de tequila, por conta do bar. Mas, espera, o-lha só, se você por a-ca-so sacar uma carta qualquer de copas ou de ouro,…”. Pausa dramática. Sal levanta apenas a sobrancelha esquerda, em gesto ensaiado por volta dos 15 anos no espelho do banheiro da família por dezenas, talvez uma centena, de vezes, com o intuito de fazer novos amigos na escola (não deu certo). O barman, compenetrado, tendo segurado durante todo esse tempo na mão esquerda um frasco de angostura e na direita uma camisinha usada, sem sequer um nozinho para fechar (você não vai acreditar em como os jovens andam harmonizando seus drinques), aproxima o rosto do de Sal. “…então catchíduru berin djidum, mamadíbulu catí gudum.” O barman aperta o rosto em confusão. Num lance de prestidigitação – talvez seu único real talento, essencial para ter avançado nas fileiras do truco –, Sal guarda as cartas na manga da canhota enquanto com a direita arranca os objetos das mãos do barman. Sem interromper o movimento, derruba os respectivos conteúdos da angostura e da camisinha nos olhos esquerdo e direito do homem, que, apesar de gritar agora com o ardor, perceberá amanhã pelo toque na pálpebra direita que descobriu um hidratante maravilhoso para a região dos olhos. Com a esquerda, Sal recolhe a garrafa de Salza abaixo da camisa enquanto com a direita toma apoio para saltar o balcão. Segue para os seus colegas truqueiros e com alguma elegância pero no mucho lhes vai empurrando pelos ombros rumo a uma discreta saída na lateral do prédio: “Meus caros, tenho comigo uma garrafa quase cheia. Além disso, muita sede e nenhuma vontade de permanecer nesse local insalubre. Alguém conhece um bom puteiro? De preferência que não pague para entrar? E que não embacem de entrar com essa nossa tequilazinha?”