A Saga de Sal – Parte 3

P. O local não tem mais que umas dez pessoas, e a banda – um duo de contrabaixo e piano – toca pra nenhuma delas. Mika – é como o truqueiro alto chama o truqueiro baixo – era quem os levara ali. Já no salão, Sal toma a dianteira e contorna uma mesa, sentando no sofá sob um bastão neon amarelo. Sejam eles realmente ignorantes de quem ele é ou não, ficar no contraluz pode ser uma vantagem. Olhos ofuscados, mente desfocada. Sun Tzu teria orgulho. Sal desliza a garrafa na mesa sebosa e seus olhos buscam um provedor de copos. Ou mesmo só os copos, sem intermediário. “Eu vou pedir uns copos lá com a Davis. O brownie daqui é famoso. Você aceita um?”, é o alto quem diz. O local, Sax & Drugs, puteiro disfarçado de bar de jazz, é conhecido (embora pouco) por só receber mulheres em seu palco. Seja na guitarra ou na siririca. A baterista segue em um aparente semi transe, enquanto sua parceira, quase inteiramente oculta por trás do contrabaixo, toca particularmente não para eles.
L. Despertado à força do transe causado não só pelo semitranse da baterista como pelo oculto mas aparente sim, me transo da baixista, Sal limpa a baba com a manga e responde. “Sim, me gusta. Vou querer um. Vai ser pra viagem?” “Toda comida aqui é pra viagem, não importa onde consumida.” Mal prestando atenção à resposta do rival-confrade, Sal volta a observar o palco e a plateia. Não havia uma pianista ali quando ele entrou? Tarde demais, seja lá o que ele tivesse consumido ao longo da noite passava a fazer efeito — a tequila ainda esperava copos e o seu corpo, o brownie, portanto…adrenalina? Talvez tesão. A baixista encerrava o seu solo sem som, a boca em O urrando numa vibração aguda demais para ouvidos primatas enquanto a corda de mi afinada em ré, estalada por um descuidado polegar gozoso, tremia em infrassom, todo o conjunto fazendo Sal gemer não por seus tímpanos, mas por aquela dorzinha gelada acima do saco que só um orgasmo súbito e violento pode causar. Uaaaaaaarrrrrrrgggggaaahhh. Deus, como doeu. Sal mal acaba de constatar que já queria outro daqueles quando copos e brownies se materializam à sua frente.
P. Névoa branca, espessa. Os olhos de Sal veem apenas num borrão a tequila derramada nos copos, os copos estendidos às bocas, as bocas repuxadas em sorrisos, o álcool escorrendo pelos cantos. Sal limpa a manga com a baba e leva o olhar pro alto, o neon inundando o turvo de seu mundo, fazendo-o todo bile. O gosto azedo lhe pesa o estômago. Sal enfia meio brownie na boca pra não ter que falar. Ao. Nhac. Menos. Nhoc. Por. Gulp. Ora.
-E o que trouxe você aqui? – é o baixo quem pergunta; o tom é árido. Sal tosse, seu olhar perdido no palco:
-Ela.
-Oi?
Sal aponta com o pescoço. No palco, a baixista, sentada num banco alto, gira o instrumento no espigão deixando entrever o espaço entre sua saia. O baixo pousa aninhado entre seus joelhos, o recorte em F do seu tampo cobrindo o outro recorte. Sal consegue balbuciar:
-Que cê acha?
O alto ri com o nariz e espera receber o olhar de Sal:
-Ele não é dessas coisas
-Oi?
-O Mika.
-Hem?
-Gay
-Ah..
A corda retesada vibra em silêncio sob dedos hábeis. Talvez alguma peça de John Cage.
-Gosto daqui. Não me distrai. – Mika encerra, como um cacto.

L. “Hhhhm. Entendo. E você está pensando em algo específico?”. Sal tenta pôr a cabeça em ordem, trabalhar no seu plano no meio de toda a algazarra alcoólica que já virou a sua noite. Como sempre. A sua ex-namorada tinha razão.
“Sim. Estou pensando em você.”
Por via das dúvidas, Sal encosta a bunda no fundo do sofá e põe a mão sobre a própria braguilha. Não quer ser apalpado de surpresa, e tampouco deseja que compreendam mal o volume intumescido ali sob a calça. Ainda longe de encerrar sua performance arterótica, a baixista tinha acabado de tirar do entrevão das pernas um dedo solitário mas encharcado. Ela o exibe em riste para toda a plateia e por fim executa uma rápida sequência de ligatos em diminuta – com o mesmo dedo. Tanto sangue fluiu à virilha para segurar a ereção que Sal passa a ficar em dúvida se sua confusão mental é mesmo pela tequila ou por falta de oxigenação, ou ambos.
“Hm. Saquei. Está me achando bonito, ou algo assim?”
“Não. Você também não faz meu tipo. Sujo demais, e parece ter mau hálito.”
Sal limpa a garganta enquanto procura com a mão esquerda o fiel spray de mel com própolis num dos bolsos de sua calça cargo; a mão direita firme como um cão de guarda sobre a calça.
“Que pena. Então sob qual aspecto exatamente eu estou na sua cabeça? ahnn…Mika.”
O truqueiro baixo estende seu corpo sobre a mesa, em sua direção. Sal, hesitante, acompanha o movimento, crispando os lábios. Mika cochicha em seu ouvido.
“Você chegou a ouvir falar de algum traidor da ordem?”. O coração de Sal dispara. Sua ereção permanece, agora tangida por nervosismo ao invés de tesão.
“Não, claro que não.”
“Nunca?”
“Jamais.”
Mika afasta o corpo e o olha sério, o tão sério quanto é capaz.
“Que pena. Porque tive desde mais cedo a certeza de que você era um dos nossos.”
“Não sou?”, Sal responde com a voz mais fina do que gostaria.
“Um dos dissidentes, digo. Que irão trazer a nova era.”