An Afternoon in Terezín

Both men shared a cheap cigarette sent by Cvjetko’s family, directly from Sarajevo. The chief guard tried to withhold the gift. The prisoner promised that on the next delivery they would send wine to the German soldiers.

“Vaso. Have you noticed what day is today? Three years since we’ve been here.”

“Three years since we haven’t seen Gravo.”

“Do you think it’s true? That he lost his arm?”

“I don’t know, guess so. That right hand was so damn good. He will have to learn to shoot with the other the same way once he gets out.”

Cvjetko smiled. He waited for Vaso to return the cigarette. One of the guards shouted something in German, letting all on the patio know they had five minutes.

“You’re too hopeful. Trifko and Nedelijko are already gone. If Gavrilo really lost his arm, then it’s a matter of time for him. And for us too.”

“Gavro is not like us.”

“Heroes also die from tuberculosis, Vaso.”

“Have you ever heard him swear? His father never cursed. Nor drank.”

“I doubt he hasn’t cursed in these three full years. Maybe no one heard it. But he did.”

“Trifko was for some time in the cell beside his. He told me stories.”

“Trifko was mad.”

“Mad, yes, but he had ears. Gavro talked from his cell. Trifko sometimes answered, but Gavro wasn’t speaking to him. He spoke to himself, or to God.”

“And what did he say?”

“That the world is going to end.”

“Big news. The world is ending. Everything is a battlefield now. Jesus, we’re almost lucky we’re here inside.”

“There’s more. Trifko heard him saying that aircrafts carrying machine guns and bombs would murder all the troops. That when there weren’t soldiers living anymore, the war would end, and all the kings and presidents would march in a big parade in Paris.”

“Trifko was fucking mad. Gavro as well.”

“And he said that from each side of the parade men would sprout, small and starved. That each of these men would kneel and puke. That from each one’s stomach would flow away not food, but a handgun. That the kings would stare from their cars, paralysed like statues. That one would finally do the correct math: for each man, a king, for each king, a bullet.”

Cvetko finished the cigarette while fiddling with a worm between the fingers of his other hand.

“We are not going to leave, Vaso.”

The two men stood up and started walking towards their single cells. Whoever disrespected the limit would lose the right to leave for the patio, one hour each day. If Gavrilo ever left his cell at any moment, they never got to hear about it.

Gavrilo Princip and his co-conspirators were sent to the Terezín prison, currently in Czech Republic, after being accused of conspiracy and murder. Gavrilo shot down Archduke Franz Ferdinand, heir to the Austrian-Hungarian throne, and his wife Sophie, while they paraded through Saravejo in their car, on June 28th, 1914. This assassination is considered to be the trigger which overflew the tensions between the European nations, leading to the First World War.

[English translation of my short story “Uma Tarde em Terezín”]

Swarm

Larissa knew the day had come when the last cat left town. It had been months since she began receiving the signs, which only she understood: the scent of sage rising from the manholes; the taste of iron in the fruits; the solar and lunar eclipses on the same month; the rats that overran the streets. She sat down to write, the way she liked, by hand. She knew her grandchildren said nobody used to do that anymore. She began with their names. She tore the notebook pages and thew the bits on the floor. Soon rats came to eat them. She thought about the school she went to, which had been long closed. The pages ended before the names and she stood up, leaving the rats which sprawled over her kitchen table devouring the notebook. With the pen still in hand, she squatted by the corner of the room, where the wall received no sunlight and was whiter. The act of writing fueled her memory, and the memory, her spite. She remembered her daughter, who she knew now called her senile. She drew her family tree, hurrying up with each branch while the rats devoured the previous one, chewing the bits of wall where her pen had just been. Some began eating away at the hem of her dress. More names: many neighbours, all of her lovers. The cashier who had winced at her teeth. Her dress was now rags, and the feet on her skin did no longer bother. Larissa recorded the name of each person, and wrote her daughter’s from ground to ceiling, so that no misdeed would be lost. By ten, moon turned dark once again. By eleven, power went down, and Larissa finally understood that in a lightless world there is no nudity. At a quarter before midnight, the rats started gnawing on her, starting by the feet. She smiled, and left a sole name for the end, which she whispered to the animal who bit her tongue away.

[English translation of my short story “Ninhada”]

Uma Tarde em Terezín

Os dois homens compartilhavam um tabaco enviado pela família de Cvjetko, diretamente de Sarajevo. O chefe dos guardas quis reter o presente. O preso prometeu que na remessa seguinte enviariam uma garrafa de vinho para os soldados.

“Vaso. Percebeu que dia é hoje? Três anos que chegamos.”

“Três anos que não vemos Gavro.”

“Você acha que é verdade? Que ele perdeu o braço?”

“Não sei, dizem que sim. Aquela direita era tão boa. Vai ter que aprender a atirar igual com a outra quando sair.”

Cvjetko sorriu. Esperou Vaso lhe devolver o cigarro. Um dos guardas gritou em alemão, alertando a todos no pátio que tinham cinco minutos.

“Você está otimista. Trifko e Nedelijko já se foram. Se Gavrilo perdeu mesmo o braço, é questão de tempo para ele. E para nós dois.”

“Gavro não é como a gente.”

“Heróis também morrem de tuberculose, Vaso.”

“Gavro não é como a gente. Tomou cianeto quando matou o arquiduque. Não morreu.”

“Tuberculose é pior que cianeto.”

“Você já ouviu ele xingando alguma vez? O pai dele não xingava. Nem bebia.”

“Duvido que ele não tenha xingado nesses três anos. Ninguém deve ter ouvido. Mas ele xingou.”

“Trifko ficava na cela ao lado da dele. Me contou as histórias.”

“Trifko era louco.”

“Louco sim, mas sabia ouvir. Gavro falava de sua cela. Trifko às vezes respondia, mas Gavro não estava falando com ele. Falava sozinho, ou com Deus.”

“E o que ele dizia?”

“Que o mundo vai acabar.”

“Novidade. O mundo está acabando. Tudo virou um campo de guerra. Jesus, temos quase sorte de estar aqui dentro.”

“Tem mais. Trifko ouviu ele dizendo que aviões carregando metralhadoras e bombas irão matar todas as tropas. Que quando não houver mais soldados vivos, a guerra terminará, e todos os reis e presidentes farão um grande desfile em Paris.”

“Trifko era louco. Gavro também ficou.”

“E que de cada lado sairão homens, pequenos e famintos. Disse que cada um dos homens se ajoelhará vomitando, que da barriga de cada um sairá não comida, mas uma pistola. Que os reis olharão paralisados de seus carros. Que se fará finalmente a matemática correta: para cada homem, um rei, para cada rei, uma bala.”

Cvetko terminou o cigarro enquanto brincava com uma lagarta entre os dedos da outra mão.

“A gente não vai sair daqui, Vaso.”

Os dois se levantaram e seguiram em direção às solitárias. Quem desrespeitasse os horários perderia direito ao banho de sol, uma hora por dia. Se Gavrilo em algum momento saía de sua cela, eles nunca souberam.

Gavrilo Princip e seus colegas foram enviados para a prisão de Terezín, atualmente na República Checa, após serem acusados de conspiração e assassinato. Gavrilo matou a tiros o arquiduque Franz Ferndinand, herdeiro do trono austro-húngaro, e sua esposa Sophie, enquanto desfilavam de carro em Sarajevo em 28 de junho de 1914. Este assassinato é considerado o gatilho que transbordou as tensões entre as nações europeias, dando início à Primeira Guerra Mundial.

[Texto com o tema Conto Histórico, 2000 toques, produzido para a oficina literária Nocaute Iceberg, de Joca Terron]

Sépia e Marrom

Por conta das velhas luzes incandescentes, a sala brilhava com um tom sépia. O homem parou em frente ao aparador e olhou cada uma das fotos, segurando-as próximas ao rosto. Cobriu a face com as mãos, mesmo estando sozinho. Após alguns minutos, se dirigiu ao banheiro. Ficou se vendo no espelho: olhos vermelhos, olheiras roxas. Entrou em um dos quartos. O local estava todo arrumado, com exceção dos lençóis. Abriu uma das gavetas da cômoda. Meias e calcinhas. Abriu então outra, e mais outra, até que achou o que buscava. Pôs sobre a cama um conjunto de blusa e pantalona marrons. Deitou-se ao lado e ficou acariciando os tecidos, suavemente, de olhos fechados. Então se levantou e, com cuidado, vestiu o cabideiro, cuja altura chegava ao seu pescoço, com aquelas roupas de mulher. Levou o cabideiro à sala. Sem precisar procurar, colocou um bolero no aparelho de som.

Deu um passo à frente enquanto inclinava o cabideiro para trás. Assim que a música subiu de volume, passou a dar voltas pela sala, segurando o cabideiro enquanto girava com passadas firmes. A cada canção ele dava voltas mais longas e mais rápidas, até que, com seu corpo tremendo e se chocando com os móveis, se descolou do compasso da música. Jogou o cabideiro com força no chão. Se ajoelhou ao lado e rezou o Pai Nosso. Voltou a se deitar ao lado das roupas, olhando para elas enquanto cantarolava baixinho um dos últimos boleros do disco. Saiu do apartamento deixando as luzes acesas.

No aparador, as fotos iam do preto-e-branco ao feio colorido recente. Via-se nas primeiras uma família: pai, mãe e duas crianças, todos com olheiras, inclusive os menores. A mãe sumiu ainda nas fotos em preto-e-branco. O rosto do pai se cobriu de cansaço, até que também desapareceu. O casal de filhos dominava o restante das fotos, da adolescência à vida adulta. Numa das mais recentes, se viam os dois abraçados, com uma montanha nevada ao fundo. Ambos tinham o mesmo nariz e as mesmas olheiras. O homem sorria. A mulher usava roupas marrons.

[Texto com o tema Conto Imagético, 2000 toques, produzido para a oficina literária Nocaute Iceberg, de Joca Terron]

A Espera

Roberto contraiu e alongou o pescoço. Os joelhos doíam após aquelas horas de espera. Levantou-se e dobrou com cuidado cada perna. Aproveitou para ver em que número o letreiro estava. Ainda no 34. Ele, que tinha recebido o 35, não entendia porque tanta demora. Olhou em volta. Ninguém mais saía nem chegava tinha horas. Não havia outros esperando. Observou a porta grande à sua direita. Considerou suas opções, resolveu que faria algo. Mas antes se sentou de novo.
Notou, cansado, o quão forte era a luz naquela sala. Acompanhou uma mosca que veio zumbindo de longe. Pousou primeiro no cabelo armado da recepcionista. Dali voou para a careca suada do segurança. Após alguns minutos, veio aterrissar na sua coxa. Roberto considerou dar-lhe um tapa, porém lembrou-se do nojo que sentia de insetos. Tentou afastá-la abanando com a mão. A mosca nem se mexeu. Ele considerou suas opções. Precisava fazer algo.
Antes que pudesse agir, seu nariz foi nocauteado pelo perfume da mulher que tinha acabado de entrar. Ela cumprimentou o careca com um aceno familiar e se sentou. Sua fragrância continha uma dose violenta de álcool e caramelo. Roberto mal teve tempo de se surpreender com sua chegada. Ele estava muito distante, na sala da coordenadora de sua velha escola. Dona Raquel puxava sua orelha e dizia que se recusava a entender como ele, Betinho, podia ter perdido sua mochila pela quinta vez no ano. Dona Raquel também cheirava a álcool e caramelo. Antes que Roberto chorasse, a mulher do perfume se levantou e entrou pela porta. As mãos de Roberto eram de novo adultas, e a escola tinha sumido. Ele olhou para o letreiro. Permanecia no 34.
Roberto pegou o celular para ver as horas. A tela estava escura. Tentou ligá-lo, não conseguiu. Olhou em volta, tudo estava vazio: a mosca não estava mais lá, o careca e a recepcionista tampouco. Roberto se perguntou se já seria tão tarde. Decidiu que faria algo. Procurou uma janela. A única que havia na sala tinha desaparecido. Ele começou a gritar pedindo ajuda. Ao olhar para trás, notou que o letreiro indicava o número 35.
Roberto se aproximou da porta. Abriu e viu o que havia dentro. Considerou suas opções, então entrou.

[Texto com o tema Sentidos: luz, cheiros, sons, etc, 2000 toques, produzido para a oficina literária Nocaute Iceberg, de Joca Terron]

Ninhada

Larissa sabia que o dia tinha chegado quando o último gato sumiu da cidade. Fazia meses que recebia e entendia os sinais: o cheiro de sálvia que subia dos bueiros; o gosto de ferro nas frutas; o eclipse solar e o lunar no mesmo mês; os ratos que tomaram conta de tudo. Ela se sentou para escrever, do jeito que gostava, à mão. Sabia que seus netos diziam que ninguém mais escrevia assim. Começou pelos nomes deles. Picotou as folhas e jogou no chão. Logo os ratos vieram comer os pedaços. Pensou na sua escola, que não devia existir mais. As páginas terminaram antes dos nomes e ela se levantou, deixando os ratos que passeavam pela mesa despedaçarem as folhas. Ainda com a caneta, se agachou no canto da sala, onde a parede era mais branca. Escrever lhe atiçava a memória, e a memória, o rancor. Se lembrou da sua filha, que agora a chamava de senil. Desenhou a árvore genealógica, se apressando para terminar cada galho enquanto os ratos mastigavam o reboco do anterior. Alguns passaram a morder a barra de sua roupa. Mais nomes: vários vizinhos, todos os amantes. O caixa que tinha rido ao ver seus dentes. Seu vestido era um trapo, e as patas sobre a sua pele deixaram de incomodar. Larissa se recordou do nome de cada um, e escreveu o da sua filha com linhas do teto ao chão, para caber todas as desfeitas. Às dez, a lua voltou a sumir do céu. Às onze, a energia acabou, e Larissa entendeu que num mundo sem luz não havia nudez. Às onze e quarenta e cinco, os ratos começaram a lhe roer, começando pelos pés. Deixou um único nome para o fim, que ela sussurrou ao animal que comeu a sua língua.

[Texto com o tema Fim do mundo, 1500 toques, produzido para a oficina literária Nocaute Iceberg, de Joca Terron]

Donald Barthelme – A Escola

[Tradução livre do conto The School, de Donald Barthelme, por Lealdo Andrade]

Bom, nós fizemos todas aquelas crianças saírem para plantar árvores, veja, porque achamos que…isto fazia parte da educação delas, para elas verem como, você sabe, os sistemas das raízes…e também o senso de responsabilidade, tomar cuidado com as coisas, serem individualmente responsáveis. Você sabe do que eu estou falando. E as árvores morreram todas. Eram laranjeiras. Eu não sei porque elas morreram, elas simplesmente morreram. Algo possivelmente de errado com o solo ou talvez os produtos do viveiro não fossem os melhores. Elas reclamaram da situação. Então nós tínhamos trinta crianças lá fora, cada uma com sua arvorezinha para plantar e acabamos com essas trinta plantas mortas. Todas aquelas crianças olhando para os galhos marrons e pequenos, foi deprimente.

Não teria sido tão ruim se não fosse por, somente duas semanas antes do negócio com as plantas, todas as cobras terem morrido. Mas eu acho que as cobras – bem, a razão de as cobras terem chutado o balde foi que…você se lembra, a caldeira ficou desligada por quatro dias devido à greve, e isto era justificável. Era algo que você podia explicar às crianças, por causa da greve. Digo, nenhum dos pais deixaria elas atravessarem a linha de piquete e eles sabiam que havia uma greve acontecendo e o que ela significava. Então quando as coisas recomeçaram e nós achamos as cobras, as crianças não ficaram muito incomodadas.

Com as hortas foi provavelmente uma situação de regar em excesso, e pelo menos agora elas aprenderam a não fazer isso. As crianças eram muito atenciosas com as hortas e algumas delas provavelmente…você sabe, derrubaram um pouquinho a mais d’água quando não estávamos olhando. Ou talvez…bom, eu não quero pensar em sabotagem, apesar de que isso nos ocorreu. Digo, somente passou pelas nossas cabeças. Nós o pensamos provavelmente porque antes os hamsters já tinham morrido, e os os ratos brancos tinham morrido, e a salamandra…bom, agora elas aprenderam a não carregar os animais em sacos de plástico.

Claro que esperávamos que os peixinhos tropicais fossem morrer, não seria nenhuma surpresa. Estes tipos, você olha torto para eles e os bichos já aparecem boiando de barriga pra cima. Mas o planejamento didático pedia por peixes tropicais àquela altura, não tinha nada que pudéssemos fazer, acontece todo ano, você só precisa correr um pouco por essa fase.

Não deveríamos nem ter um filhote.

Não deveríamos nem ter um, era apenas um filhote que a filha dos Murdoch um dia encontrou debaixo de um caminhão da Gristedes e ela ficou com medo que o caminhão fosse passar por cima dele quando o motorista tivesse finalizado a entrega, então ela o enfiou dentro da mochila e o trouxe junto para a escola. Então a gente tinha esse filhote. Assim que o vi pensei, Jesus, aposto que ele vai sobreviver por duas semanas e então…e foi o que aconteceu. Ele não devia nem mesmo estar na sala de aula, tem algum tipo de regulamentação sobre isso, mas é impossível dizer para elas não ficarem com o filhote quando o filhote já está lá, bem na frente delas, correndo em volta do piso e au au latindo. Elas o chamaram de Edgar – isto é, elas o batizaram com meu nome. Elas se divertiam muito correndo atrás dele e gritando, “Vem, Edgar! Isso, Edgar!”. Elas riam demais com isso. Elas gostavam da ambiguidade. Eu mesmo me divertia. Não me incomodo com a piada. Elas fizeram uma casinha para ele no armário de suprimentos e tudo mais. Eu não sei do que ele morreu. Indisposição, acho. Provavelmente não devia ter recebido nenhuma vacina. Eu tirei ele de lá antes que as crianças chegassem na escola. Eu conferia o armário toda manhã, rotineiramente, porque sabia o que iria acontecer. Eu o dei para o zelador.

E então teve o órfão coreano que a turma adotou através do programa Ajude as Crianças, todas as crianças traziam 25 centavos por mês, esta era a ideia. Foi uma situação triste, o nome do menino era Kim e talvez o tenhamos adotado tarde demais ou algo assim. A causa da morte não foi declarada na carta que recebemos, eles sugeriram que adotássemos outra criança no lugar e nos enviaram alguns cases interessantes, mas não tivemos estômago. A turma sentiu o golpe, eles começaram (eu acho, ninguém jamais me disse algo diretamente) a sentir que talvez houvesse algo de errado com a escola. Mas eu não acho que haja nada de errado com a escola, particularmente, já vi melhores e já vi piores. Era apenas uma fase de azar. Nós tivemos um número extraordinário de pais falecendo, por exemplo. Acho que houve dois ataques cardíacos e dois suicídios, um afogamento e quatro mortos juntos num acidente de carro. Um infarto. E tínhamos a taxa de mortalidade alta habitual entre os avós, ou talvez tenha sido mais alta esse ano, pareceu. E finalmente a tragédia.

A tragédia aconteceu enquanto Matthew Wein e Tony Mavrogordo brincavam onde estão escavando para o novo edifício do poder federal. Havia todas essas tábuas grandes de madeira empilhadas, você sabe, no canto da obra. Tem um processo jurídico vindo por conta desta história, os pais acusam as tábuas de estarem mal empilhadas. Eu não sei o que é verdade e o que não é. Tem sido um ano estranho.

Eu me esqueci de mencionar o pai de Billy Brandt, ele foi esfaqueado fatalmente enquanto confrontava um intruso mascarado em sua casa.

Um dia, tivemos uma discussão em classe. Elas me perguntaram, aonde eles foram? As árvores, a salamandra, o peixe tropical, Edgar, os papais e mamães, Matthew e Tony, aonde eles foram? E eu disse, não sei, não sei. E eles disseram, quem sabe?, e eu disse, ninguém sabe. E eles disseram, a morte é aquilo que dá sentido à vida? E eu disse não, a vida é o que dá sentido à vida. Então eles disseram, mas não é a morte, tomada enquanto premissa fundamental, o meio pelo qual a garantida mundanidade de cada dia pode ser transcendida na direção de –

Eu disse, sim, talvez.

Eles disseram, nós não gostamos disso.

Eu disse, é uma premissa lógica.

Eles disseram, é uma canalhice!

Eu disse, sim, é.

Eles disseram, você vai fazer amor agora com Helen (nossa assistente de aula) para que possamos ver como se faz? Nós sabemos que você gosta de Helen.

Eu gosto de Helen mas disse que não faria.

Nós ouvimos falar tanto disso, eles disseram, mas nunca vimos.

Eu disse que seria demitido e que aquilo nunca, ou quase nunca, era feito como demonstração. Helen olhava para fora pela janela.

Eles disseram, por favor, por favor faça amor com Helen, nós necessitamos de uma asserção de valor, nós estamos assustadas.

Eu disse que elas não precisavam ficar assustadas (apesar que eu frequentemente fico) e que havia valor em todo lugar. Helen veio e me beijou. Eu a beijei algumas vezes na testa. Nós nos abraçamos. As crianças estavam excitadas. Então ouvimos uma batida na porta, eu abri a porta, e o novo hamster entrou. As crianças se animaram selvagemente.

Algumas cenas em Winnipeg (II)

Toda manhã pego um ônibus da mesma linha no mesmo horário. Neste ônibus, vou para o fundo e sento do lado esquerdo. Na mesma fileira, na extremidade oposta, sempre está sentado o mesmo homem. Tem uma expressão séria. Ele deixa seu par de luvas e gorro, caso esteja usando gorro, no banco à esquerda, com os pés apoiados no metal do banco à frente. Aparenta estar com entre 40 e 45 anos. É o único no ônibus que nunca está usando o celular, lendo um livro ou ouvindo música. Talvez tenha náusea, ou talvez, mais provavelmente, ache isso tudo uma besteira. Fica com as mãos juntas sobre as pernas, dedos entrelaçados, olhando para frente ou de olhos fechados.

Uma vez entrou junto comigo um outro homem com aparência de sem-teto, que se sentou perto de nós. O homem do canto me ignorou como de costume, porém ficou olhando para o possível sem-teto fixamente por alguns minutos. Depois voltou a olhar para frente. Observou também quando o sem-teto desceu no ponto em frente a um shopping.

Não sei onde o homem do canto sobe, pois subo depois. Sei, no entanto, onde desce, cerca de 1km antes de mim, em frente a uma concessionária. Tem cara de quem poderia se chamar Paul, mas com os estrangeiros pode ser difícil de prever.