Rita

1

Ouço batidas fracas na porta do apartamento. Estranho. Não espero ninguém. Felizmente não estava ouvindo música ou vendo TV, pois não teria ouvido. Apenas lia na cama. O interfone tampouco chegou a tocar. Quem poderia ser?

As batidas se repetem, mais aceleradas. Sem parar para acender a luz da sala, abro a porta. Rita se encontra à minha frente, calada. Uma figura escura de pouco mais de um metro, cuja silhueta é desenhada pela luz do hall.

De imediato, procuro por cortes, algum ferimento emergencial ou pista que justificasse a presença dela no edifício onde seu professor morava. Nada. Perfeitamente limpa. Poderia ter acabado de tomar banho. Usa um vestido preto.

– Meu Deus, Rita. Como você chegou aqui? Aliás, como sabe onde eu moro?

– …

– Alguém lhe deixou aqui na rua? Como você passou pela portaria?

– …

Tendo ignorado todas as minhas perguntas, ela me olha sério enquanto estica em minha direção uma folha que eu até então não tinha visto. Pego a folha e me viro para observá-la sob a luz do hall. Nela há um desenho feito com giz de cera. Somente duas cores: vermelho e preto.

Na parte direita da folha, em traços infantis, uma cabeça flutua. É uma cabeça de homem. Poderia ser a minha. Os olhos, talvez meus olhos, estão recheados de vermelho e parecem saltados, enquanto do pescoço pinga sangue. O corpo, um semiborrão igualmente vermelho, jaz separado da cabeça, num arranjo contorcido de braços e pernas que desafia a lógica. Acima do corpo, um carro preto. Do outro lado do desenho, uma menina também colorida de preto observa a cena à distância.

Três dias antes:

Me chamo Rodrigo. Sou professor de Português no Ensino Fundamental. Turmas de 2º e 3º anos. Ou seja, meus alunos têm, em média, oito de idade. A cada duas semanas, eu peço uma redação das crianças. Para escreverem na sala mesmo. Gostaria de sempre pedir tema livre, mas a maior parte se embola quando lhes é dada liberdade criativa. Ficam perguntando sobre o que afinal de contas é para escrever. É triste, porque seria justamente a hora de exercitarem sem amarras a imaginação. Paciência. Não quero, nem posso, esperar cinco horas para ver se um dos moleques se decide quanto ao que quer escrever: se é sobre o picolé que chupou com os avós no fim de semana ou sobre a catota que tirou do nariz e guardou num copo velho ao lado da cama.

Para evitar isso, eu lhes sugiro: “essa semana, quero que cada um escreva dez linhas sobre o animal que gostaria de ter”. Ou “meia página sobre tudo que fizeram no sábado”. Ou ainda, se estou me sentindo sádico, “descrevam minuciosamente o que cada membro da sua família fez hoje de manhã”, só para ver se lhes ensino a prestar atenção no mundo ao redor, ao invés de observarem unicamente as telas de seus celulares e tablets.

Os textos são cheios, em sua maioria, de erros. É claro. Meus alunos têm oito anos e estão escrevendo à mão, não no Word – não que isso salve o pescoço de todo adulto. Enfim, as crianças estão ali para aprender. Mesmo tão jovens, vejo talento em alguns. Seja para a escrita ou outros conhecimentos.

Tem um garoto, o Thyago, que é tão descritivo e preciso quando descreve seu quarto – o que acaba fazendo não importa o tema da redação –  que acho difícil não ir para Arquitetura, daqui a dez anos.

Tem uma menina, a Ana, que sempre dá um jeito de escrever sobre os games que tem jogado: o que é bom e o que é ruim em cada um deles; o que funciona ou, pelo contrário, nem deveria ter sido posto no jogo. Tudo de um modo muito perspicaz, em especial para a sua idade. Disse que aprende com seu pai, que é programador e com quem passa as noites jogando. Tenho certeza que de que ela se tornará uma game designer, também daqui a dez anos, ou até menos, se for precoce.

E tem a Rita.

Ela não é uma aluna de muito destaque. Nunca bagunçou muito, só um dia ou outro quando as amiguinhas mais próximas também estão alvoroçadas. Normal. Suas notas sempre ficaram ali na casa dos sete e meio, incluindo Português.

Talvez nas últimas semanas estivesse mais abatida, difícil notar no meio das quarenta e pouco crianças para quem dou aula, sem contar as das outras turmas. Poderia estar apenas gripada, ou com diarreia. Deus e minha mãe sabem que eu, quando tinha essa idade, praticamente não passava uma só semana sem, como meus colegas diziam, vomitar pela bunda.

Naquela semana eu tinha pedido que meus alunos escrevessem uma página inteira sobre os pais. Naquela noite, depois de assistir pela oitava vez o filme Deixe Ela Entrar – sempre paro para ver até o fim quando pega ele pela metade na TV a cabo –, deixei o som na rádio rock e preparei um café. Iria corrigir até tarde as dezenas de páginas  que discorriam repetidamente sobre a beleza e o carinho e o cansaço ao fim do dia da mãe trabalhadora e o cuidado e o rigor e o cansaço ao fim do dia do pai trabalhador. Ainda bem que meus alunos mirins escrevem redações de quinze linhas, não quinze páginas, como as dos meus ex-colegas da Faculdade de Letras.

Dentre tantas, somente quando li a redação de Rita foi que abri os olhos ao que poderia estar se passando. Quase caí da cadeira quando, numa grafia que inicialmente é pequenininha e bem-feita e aos poucos se torna maior e medonha, li as seguintes palavras:

“Meu nome é Rita. Hoje, Rodrigo, nosso professor querido de Português, pediu pra gente escrever sobre o nosso pai e a nossa mãe. Gosto muito de papai. Também gosto de mamãe. Mas não sei direito o que vou falar sobre eles. Só vou tentar ser o mais sincera possível, foi isso que ele pediu pra gente. Mamãe sempre cuidou tão bem de mim, faz comida todo dia pra gente. Papai sai correndo de manhã, mas depois que volta também brinca bastante com a gente. Os dois gostam de me dar lápis e canetas de muitas cores, é o que mais gosto de ganhar. PENA que os últimos desenhos que eu FIZ MAMÃE NÃO gostou, ela usou uma PALAVRA QUE EU ainda nunca tinha ouvido: falou QUE ERAM ALMADIÇOADOS. Não sabia o que ERA, COMECEI a CHORAR. Perguntei, MAMÃE, MAS O QUE É isso, porque a SENHORA NÃO GOSTOU do desenho? Ela falou de NOVO A MESMA PALavra, disse que eRAM ALMADIÇoadOS, e pegou todos, e rasgou. ELA RASGou TODoS MEUS DESENHOS. DEPOIS DISso, me DEIXOU DE CasTIGO e DISSE QuE EU Não IriA DESENHAR MAIS NUNCA. O QUE ela NÃO SABIA ERA QUE MEU PROFESSOR iria NOS dAR uma FOLHA E PEDIR PARa A GENTE ESCREVER NELA. AgoRA POSSO DESENHAr TUDO QUE quISER.”

O resto da folha e toda a parte externa eram cobertos de desenhos horríveis, que pareciam ter sido de fato desenhados pela Rita, se me lembro das flores e outras coisas que esperaria de uma menina da idade dela, desenhadas em papéis que ela já rabiscou em sala. A imaginação aqui estava além do conhecimento de mundo de uma criança tão nova: representações, até bem-feitas, de armas brancas, caveiras e ossos partidos, braços com seringa, corpos pendurados por cordas. Alguns instrumentos de tortura que pareciam genuinamente medievais e que eu só me lembrava de ter visto em alguns filmes sádicos italianos. O que estavam deixando aquela menina assistir?

Ainda estava para ver o pior. Quando pus a folha de lado para pensar no que fazer, vi que, ao contrário de todas as outras redações, essa tinha algo escrito no verso. Com o coração palpitando, li:

“MINHA MÃE MORREU. MEU PAI MORREU. MINHA MÃE VAI MORRER. MEU PAI VAI MORRER.

MINHA MÃE MORREU. MEU PAI MORREU. MINHA MÃE VAI MORRER. MEU PAI VAI MORRER.

MINHA MÃE MORREU. MEU PAI MORREU. MINHA MÃE VAI MORRER. MEU PAI VAI MORRER.

MINHA MÃE MORREU. MEU PAI MORREU. MINHA MÃE VAI MORRER. MEU PAI VAI MORRER.”

Na manhã seguinte, cheguei mais cedo, e, antes de entrar na sala para dar aula, passei na Secretaria para perguntar sobre o histórico de Rita e se eles souberam de qualquer relato quanto à sua família, se havia algum histórico de abuso ou mesmo se alguém tinha morrido. Nada.

Na sala de aula, estava em dúvida se Rita viria, e, caso viesse, como eu deveria agir. Nunca tinha visto algo parecido em oito anos dando aula para crianças dessa idade. Mesmo as que sofrem algum tipo de abuso físico ou, Deus as livre, sexual, não reagem desse modo. É sempre algo mais sutil, que reflete os sentimentos conflitantes da criança. Agora foi como se não houvesse sequer mais Rita ali. Parecia ser outra pessoa, mas quem, se ninguém entrou na sala durante o período em que eles escreviam?

Rita veio à aula, por fim. Foi a última, chegou atrasada. Talvez o pai ou a mãe tenham tido algum contratempo na hora de trazê-la. Não chamava a atenção de modo algum. Não estava particularmente feliz, mas tampouco parecia ter sido capaz de escrever o que eu lera na véspera. Preferi falar com ela ao fim da aula, a sós.

Quando tocou a sirene, e todos já saíam impacientes para o recreio, deixando para trás um torvelinho de mesas bagunçadas, cadernos abertos e papéis pisados, fiz sinal para Rita de que queria ter uma palavra com ela. As amiguinhas saíram fazendo aquela inconfundível expressão de “ih, se ferrou” que qualquer um faz quando seu colega é chamado pelo professor. Todos passamos por isso enquanto alunos. Nós, professores, temos o privilégio de presenciar essa cena também do outro lado da mesa. Assumo que tive medo de Rita fazer algo, talvez fugir. Ela, porém, veio em minha direção despreocupada.

– Oi, tio. – Seu tom de voz e sua expressão facial não denunciavam qualquer receio. Pelo contrário: ela sorria e parecia genuinamente curiosa. Decidi tatear a situação.

– Oi, Rita. Me diga, você está bem?

– Estou sim. Por quê? – Disse, arregalando os olhos.

– Só estou um pouco preocupado. Você se lembra do que escreveu ontem, quando pedi a vocês que fizessem uma redação?

– Não. Na verdade…não lembro de você ter pedido redação ontem.

– Como assim? – respondi, rindo – Mas é claro que pedi! Eu, você, a turma inteira estava aqui quando pedi que vocês escrevessem sobre seus pais.

– Que engraçado, tio. Só me lembro de você ficar ensinando conjugação, mais nada. Pretérito imperfeito, né? Depois fui brincar no recreio e aí tivemos aula de matemática.

– Não, não, não, eu não estou ficando louco. Sei o que aconteceu – disse mais para mim do que para ela, enquanto já procurava na minha mochila a folha. Tinha-a deixado separada, justamente para lhe apresentar e perguntar se tinha sido mesmo ela quem tinha escrito – Aqui, olha. Você fez isso ontem, mocinha.

– Mas, professor, essa folha está vazia.

Olhei para a página. De fato, estava em branco. Dos dois lados.

– Sim. Está vazia. Não é possível, deixa eu achar aqui… – revirei a mochila. De resto, tudo estava como devia estar. Nada faltando. Rita olhava para mim como se eu estivesse com problemas mentais. Havia pena no seu olhar, mas não muita; talvez mais atenção do que pena. – …é. Acho que perdi. Me desculpa, Rita. Devo ter confundido com o texto de outra pessoa. Pode sair para brincar, vai lá.

Passei cinco minutos revisando meu dia na cabeça. Me questionando se em algum momento tinha deixado a mochila à distância. Se algum aluno, de maldade ou não, poderia ter mexido, quem sabe um outro professor ou um funcionário. Não. Trouxe-a no carro e então a deixei sobre a mesa a manhã inteira, sob meu olhar. Não houve troca da folha. Olhei para o papel novamente, esperançoso, pode-se dizer, de que o que estava escrito ali ontem voltasse. Não ter que me preocupar com a própria sanidade seria talvez um peso a menos. Nada. Continuava em branco.

Naquela noite, refletindo sobre a situação, concluí que a única explicação lógica era que eu estava cansado na véspera e que a combinação tóxica do Slayer que tocava na rádio com o café mais o sono acumulado e juntando por fim o filme que tinha acabado de assistir tinha me causado uma dose de alucinação. Algo que uma mente acostumada a filmes de horror poderia criar para si a fim de quebrar a banalidade da rotina de um professor de escola primária. Dormi no sofá enquanto assistia a outro filme. Decidi na manhã seguinte deixar tudo para lá. Não queria coagir demais a menina sem que houvesse razão para isso, sem que eu soubesse que ela estava de fato envolvida.

Dois dias depois, quando voltei a dar aula para aquela turma, o lugar de Rita estava vazio.

2

Decidi ir à casa de Rita. Tinha buscado me convencer de que o que vira fazia três noites fora apenas criação da minha mente. No entanto, a ausência inexplicada dela, algo que nunca tinha acontecido antes, atinou minha curiosidade. Após a aula, conferi o endereço na Secretaria: um bairro próximo ao meu. Ótimo.

Era uma casa, não um apartamento. Isso facilita minha vida. É mais difícil evitar um eventual visitante indesejado quando se interage cara-a-cara. Bati à porta. Uma mulher com o cabelo da mesma cor de Rita, um tom marrom de madeira, me recebeu. Seus olhos estavam cansados.

– Boa tarde.

– Boa.

– Trabalho na Escola Jardim Verde. Sou professor de Rita. Você é a mãe?

– Sim, sou.

– Prazer. Meu nome é Rodrigo. Como você se chama?

– Adriana.

– Adriana, prazer. Posso entrar?

– O que você quer?

– Rita faltou na aula hoje. Tá tudo bem?

– Ela tá doente.

– Porque você não ligou na escola avisando? Ficamos preocupados.

– Tem razão. Deveria ter ligado, peço desculpas. Posso mandar depois o atestado. Era só isso que você queria?

– Não, espera. O que sua filha tem?

– Está gripada. De cama. É normal, a cada dois meses ela fica assim.

– Não posso ver como ela tá? Deixa eu ajudar.

Não esperei um convite. Me dei a liberdade de entrar, aproveitando o vão aberto da porta. Era uma casa razoavelmente grande, mas não muito mobiliada. Alguns quadros na sala, talvez de artistas locais, brinquedos espalhados no chão e no sofá. Adriana me olhava inquieta. Se me recebesse de modo mais adequado, pedindo para eu me sentar e ofertando um copo d’água, talvez me fizesse permanecer ainda mais tempo. Se me expulsasse, o que seria de seu direito, poderia aumentar minha suspeita. Aparentemente em dúvida, permaneceu ao lado da porta, sem falar nada.

– Vocês duas moram com mais alguém? Talvez seu marido?

– Sim…sim, moro. Com o Caio, meu marido, pai da Rita. Ele agora está trabalhando. – ela pareceu enfim ceder, passando a falar mais lentamente, e saindo de perto da porta.

– Hum. Entendo. O que ele faz?

– É advogado. Trabalha numa firma…pequenas causas. Nada muito sofisticado.

– Saquei. Deve estar melhor do que eu, de todo modo. – Adriana sorriu em resposta, mas só com a boca, não com os olhos. Busquei quebrar o gelo – Você também estudou no Jardim Verde? É muito comum ex-alunos matricularem seus filhos lá.

– Sim…estudei nele a vida inteira. Gostava do colégio. Digo, ainda gosto. Por isso matriculei Rita lá.

– Entendo. Por falar nela, onde fica o quarto?

– …nesse corredor, ao lado da cozinha. – ela apontou num movimento mínimo com a cabeça.

– Ah – observei a porta; percebi a burrice da minha pergunta, já que ela era a única que possuía um adesivo de My Little Pony – Posso entrar? – perguntei, já aproximando a mão da maçaneta.

– Não! Não. – ela deu um passo rápido e se pôs entre mim e a porta, dando um tapa forte na mão que eu tinha levantado.

– Calma. Não quero fazer nada. Só estou preocupado com Rita. Nós que lidamos com as crianças todo dia, aprendemos a reconhecer alguns sintomas…posso ver se é gripe mesmo ou algo mais sério.

– Você. Não. Vai. Entrar. – a cada palavra, se aproximava mais de mim. Deus, o que ela poderia estar escondendo?

– Por quê? Posso saber?

– Porque ela é minha filha e eu que decido quem entra em contato com ela ou não.

– Adriana. – desisti do sorriso e da farsa diplomática, dando um passo em sua direção. Nossos rostos estavam quase colados agora – Se você não me permitir ver como está a sua filha, posso entender que estão acontecendo maus tratos, e então quem sabe lhe den…

Nunca cheguei a concluir a ameaça. A porta do quarto se abriu. Ambos, assustados, nos viramos. Em pé no vão, Rita encarava firme a mãe. Se tinha me notado, eu não percebi.

Rita segurava em sua mão direita uma folha.

– Filha!

– Mamãe. – sua voz era neutra, quase artificial. – Fiz um desenho pra você. Porque te amo.

– Rita, onde você arranjou papel!? E o lápis? Porra! – Adriana gritava – Eu não deixei folha nenhuma no seu quarto, filha!

– Mamãe. Fiz um desenho pra você. Tome. É seu. – dava passinhos, ofertando o desenho à mãe.

Adriana hesitou durante alguns segundos. Por fim, aceitou o presente da filha. Observou-o só o tempo necessário para que os olhos processassem a imagem. Levantou então uma das mãos à boca, enquanto caía no chão do corredor. Começou a chorar, gemendo. Rita permaneceu na mesma posição. Eu parecia permanecer invisível para ela.

Enquanto Adriana gritava, retirei a folha de sua mão. Pensei que fosse ofertar resistência, não foi o caso. Era incapaz naquele momento de reagir ao que fosse.

No desenho, um homem enfiava uma faca no pescoço de uma mulher. A lâmina atravessava de um lado ao outro, da esquerda à direita, saindo num jorro de sangue. A boca da mulher se contorcia numa bagunça suja de dentes e língua. Uma menina de preto observava próxima, sem expressão. Sobre a cabeça da mulher, havia escrito: MAMÃE.

– Sai da minha casa! Agora! Sai!

Adriana gritava comigo, após ter recuperado forças para se levantar.

– Não é para ninguém ver isso! Sai!

– Mas, Adriana…

– Não quero saber! Fora! Fora, porra!

Ela me enxotou da casa aos urros enquanto destruía o desenho, rasgando a folha em metades e depois rasgando as metades em novas metades, até que tudo fosse fiapo. Ao longo de toda a cena, Rita permaneceu no local onde estava quando entregou o desenho à mãe. Antes que Adriana batesse a porta na minha cara, pude observar de relance seu corpo pequeno em pé no meio do corredor enquanto a mãe voltava a desabar sobre as tiras de papel rasgado, já rouca e com rosto inchado. Preferi não insistir. Entrei no carro e pensei no que faria.

Uma possibilidade seria entrar em contato com a polícia e fazer uma denúncia. Mas não creio que teria base. Nem quando conversei com Rita na escola nem hoje em sua casa constatei qualquer sinal de agressão. O único erro comprovável da mãe até agora foi, que eu saiba, não ter ligado para a escola por conta do que Rita está passando. Que, seja lá o que for, não é gripe. De todo modo, isso não justifica uma denúncia de maus tratos.

Poderia voltar a bater em sua casa, mas Adriana não me receberia. Resolvi, portanto, fazer o que um professor com tendências de investigador amador poderia fazer. Fui ao Arquivo do colégio.

Primeiro, conferi o histórico eletrônico de Rita. Praticamente nada. Que ficha corrida na escola uma menina de oito anos e três meses poderia ter? Umas seis faltas breves por doença desde que começou lá, no Maternal: um dado na faixa esperada. De resto, nada. Nenhum caso de agressão a colegas ou professores; nenhum surto; nenhuma crise asmática ou epiléptica em sala. Nothing, zero.

Estaria ela então começando a desenvolver sintomas de esquizofrenia, ou alguma psicose em geral? É possível, já tive dois alunos antes que pedi que entrassem em contato com um terapeuta infantil, mas o caso de Rita vai além. Nem a criança mais sádica que já conheci imaginou ou delirou a morte dos pais, não importa o quão abusivos eles tivessem sido. Talvez fosse algo hereditário? Hum. Adriana não parecia muito normal. Poderia ser algo que ela implantou na filha, ou quem sabe o pai. Já sei. Poderia dar uma olhada nos arquivos da mãe, já que ela também estudou aqui. Há. Vamos que vamos, Rodrigo.

Hum. Nossos arquivos iriam até tanto tempo atrás? O colégio tem quase um século, um bastião do bairro de Santana, mas não preciso chegar às origens. Adriana deve ter próximo dos quarenta. Teria saído do colégio há vinte e poucos anos, meio dos anos 90. Os dados ainda eram então registrados em papel. Rezei para que tenham digitalizado ao menos o acervo das últimas décadas. Fui conferir com meus amigos da Secretaria. Quebrei a cara, tudo ainda estava em papel. No entanto, podia conferir, se eu quisesse. Não sendo rinítico, o que me faria parar no hospital, era preciso apenas arregaçar as mangas e fuçar a papelada. Pedi a chave de acesso ao Arquivo, onde eu nunca tinha entrado.

Abri a porta, que ficava num canto do porão, e liguei a luz. Bolor e sujeira no chão, nas paredes e no teto, mas, sim, além disso, dois imensos armários de metal. As gavetas iam do A ao Z, separadas por gênero. Agradeci a ausência de problemas respiratórios aos céus e à criação pouco asseada que minha mãe me permitiu ter e, me aproximando do armário com a grande inscrição “Moças”, fui direto à gaveta com a letra A. Digo, a primeira delas. Todo o histórico anterior a 2000 devia estar ali, coletando pó, aguardando que o tempo terminasse de oxidar a celulose.

Puxei a gaveta. Deus. O chiado do metal enferrujado deve ter assustado todos os ratos do andar. Qual o sobrenome de Rita? Rita Carvalho Villas-Boas. Adriana Carvalho, portanto. Talvez haja mais de uma, vejamos. Corri os dedos pelas fichas de algumas crianças nascidas no meio do século passado, que àquela altura estavam bem longe de ser crianças, e que lá atrás tinham sido batizadas com infelicidades em forma de nome tais como Abetusa ou Acrimônia – quanto bullying devem ter sofrido, Jesus, mesmo que esse termo na época ainda estivesse para ser adotado. Logo cheguei ao batalhão das Adrianas. Adriana Abrão, Adriana Abreu, Adriana Baptista, Adriana Batista…pronto. Adriana Carvalho. Achei. E mais de uma. Quatro.

Foi fácil saber pela data de nascimento qual eu buscava. A Adriana Carvalho que estou investigando devia ter nascido no mínimo no meio dos anos 70, no máximo em 80 e pouco. Das quatro que passaram pelo Jardim Verde, a primeira é de 1952; as outras duas, dos anos 1990. Questão resolvida. Mesmo que tivesse errado grosseiramente na estimativa de idade, não poderia ser nenhuma das outras.

Sentei com a pasta para lê-la no chão, como tenho hábito de fazer sempre que quero ler e ninguém está olhando. Adriana Zaruchi Carvalho. Nascida em 1979. Trinta e oito anos. Meu chute foi preciso. Lá estava em anexo uma foto dela adolescente. Sim, era Adriana, mãe da Rita. Já tinha o olhar com que me recebeu hoje mais cedo; talvez menos inflamado, mas coberto de uma tristeza extraordinária para a idade. Analisei o histórico escolar. Nada de chamativo. Não perdeu ano algum; somente uma ou outra nota vermelha. Alguns 10 em Artes e Geografia; nenhum em Matemática. De resto, nenhum incidente. Nenhuma detenção ou ida à coordenação. Ela foi uma aluna tão mediana e pouco chamativa, para cima ou para baixo, quanto a filha indica que vai ser. Minha ideia investigativa brilhante me trouxe a um beco sem saída.

Joguei a pasta no chão para pensar melhor no que poderia estar acontecendo. Observava o teto mofado – vão deixar mesmo esse Arquivo se perder assim para o bolor? – quando algo me veio. Agitado, peguei novamente a pasta de Adriana e passei os olhos pelo histórico escolar. Só havia dados da 4ª série em diante. O que seria atualmente o 5º ano. Adriana mentiu para mim. Ela não estudou a vida inteira aqui.

Nesses arquivos eles registram a data de entrada no colégio? Sim. Achei. 1990. Ela já tinha dez anos completos. Onde estudou antes? Isso não consta. Eu teria como saber? Acho que só perguntando para ela. Ou fuçando os armários de sua casa atrás de xerox amareladas de matrículas dos anos 80, se é que ela guardou. Isso é insano. E onde me levaria afinal? Acho que estou enlouquecendo. Três dias que meu mundo não gira como devia.

Acreditava ter me posto em outro beco sem saída – minha única descoberta tinha sido que Adriana mentira, o que deveria na verdade já ter esperado –, quando, olhando a esmo pelo arquivo atrás de qualquer coisa que me ajudasse, notei algo. Os nomes dos pais dela. Roberto Messias Carvalho e Olga Zaruchi Carvalho. Nada chamativo neles em si, mas, ao lado direito de cada nome, constava um I.M. Peguei a pasta de outra Adriana para conferir. Ao lado dos nomes dos pais, não havia essas letras. Outra pasta ainda, para ter certeza. Também nada. Só na da Adriana Carvalho que estou investigando.

I.M. I.M. Hum. Como diz a música dos Talking Heads, qu’est-ce que c’est? Guardei as pastas na ordem em que estavam, fechei a gaveta e peguei meu celular. Sem sinal. Óbvio, estava no subsolo. Enquanto subia a escada, para poder googlar, lembrei o que significava I.M. antes que precisasse ver na Internet. Um convite de casamento que tinha recebido há alguns anos. A noiva entrou sem pai. Ao lado do nome dele, no convite, estavam lá as duas letras. I.M. In Memoriam.

Adriana já era órfã quando veio para o Jardim Verde, com dez anos.

Agradeci ao pessoal da Secretaria, que nem quis saber o que eu fora ver no Arquivo. Estavam ocupados demais com o Facebook. Entrei no meu carro e voltei para casa.

Já eram seis da tarde quando cheguei. Fiz um saudável jantar com linguiça e ovos, fritando tudo junto. Devidamente nutrido, fui ao melhor local para se pensar já inventado pela humanidade: o chuveiro. Liguei a ducha e pus a massa cinzenta para aquecer enquanto a água me refrescava.

Rita pareceu prever que seus pais iram morrer. Eu poderia chamar de prever ou de querer. Para tentar me manter numa linha menos macabra, vou me ater a prever. Já está suficientemente pesado dessa forma. Seguindo o pensamento. Rita parece ter previsto além disso que sua mãe iria morrer esfaqueada, por um homem. Seria eu quem mataria ela? Nunca machuquei nem um gato de rua. De onde Rita está tirando isso? Alguém está cochichando no ouvido dela? Se sim, quem? O capeta? Difícil pensar nesses termos extraterrenos; sou cético desde os dez anos de idade, quando parei de dar boa noite para Jesus antes de dormir.

Desisto. De vez em quando o melhor tipo de banho é aquele que é só um banho mesmo.

Me visto e vou para  cama ler um livro. Um romance policial escandinavo, para ver se absorvo algo da introspecção imaginativa daquele povo. Não consigo avançar um só parágrafo. Cada um deles cheira a morte e me lembra novamente do que está acontecendo com Rita. Absolutamente incapaz de me concentrar noutra coisa.

Porque Adriana reagiu daquela forma? Uma mãe pediria apoio, falaria com o colégio, com o professor. Ela já viu aquilo antes? Provável. Com Rita? E se passou pela mesma situação?

Ela é órfã. Está com medo de perder a filha? Não. Está com medo de morrer. Num clarão, compreendi: Adriana previu a morte dos pais. Então ficou órfã. Agora é a filha prevendo a morte dela.

A campainha toca. Meu coração para no teto. Calma, é besteira. Quem poderia ser?

No hall, Rita.

Com uma folha.

Um homem morto, sobre uma mancha vermelha. Sobre ele, um carro preto. À distância, uma menina de preto.

Ela veste preto enquanto me observa ficando branco.

Ponho-a no banco de trás do meu carro. Carro, aliás, que é um Corsa Preto. Como se minha adrenalina já não estivesse alta o suficiente.

Não tenho ideia de como ela veio parar na minha casa, ou de qualquer outro fato ligado à sua aparição à minha porta. Porém, preciso levá-la de volta para casa. Sua mãe não vai machucá-la; ela está com medo é do que pode acontecer consigo. Deve inclusive estar nervosa com o sumiço da filha. Alguém deve agir como adulto racional na história: serei eu.

Chegamos à sua casa. Para quem vê por fora, todas as luzes estão aparentemente apagadas. Adriana saiu? Talvez tenha ido procurar Rita. Decido que ficarei lá esperando com ela até que algum outro adulto chegue.

A porta da frente está aberta. Fico em dúvida quanto ao que pensar sobre isso. Adriana e o marido não tiveram a preocupação de fechar antes de sair? Talvez estejam nos esperando? Insisto em perguntar a Rita sobre como ela chegou na minha casa. Questiono também se foi ela quem saiu por último e deixou a porta aberta. Para variar, ela não responde. É incrível como uma criança pode ser fechada quando quer. Não sei com o que estou lidando aqui; a minha única certeza é de que já estou imerso demais para cogitar a possibilidade de sair sem marcas.

Ligo as luzes da sala. Vazio. Sinto o peso do silêncio.

Uma última chance a Rita de me ajudar:

– Rita, você acha que a sua mãe está aqui em casa? Preciso saber onde ela se encontra para ajudar vocês duas.

– …

Ok. Desisto. Estou sozinho, envolvido por conta própria até o pescoço nisso.

Grito para ver se Adriana está ali em algum aposento. Não ouço respostas. Vou com Rita até o seu quarto. Tudo está bagunçado: brinquedos, roupas e desenhos para cima, amontoados no chão. Rita grita, solta a minha mão e corre em direção aos seus pertences: vejo ela, com o semblante triste, juntando freneticamente os papéis picotados, buscando recompor o que foi rasgado.

Enquanto ela está em seu quarto, aproveito para vasculhar o resto da casa, acendendo as luzes dos aposentos à medida que entro. A casa está um pouco suja, talvez até bagunçada, mas nada particularmente chamativo. O choro de Rita diminui de volume à medida que me afasto. Encontro o quarto do casal. A porta está encostada, mas não fechada. Bato de levo com os dedos para ver se alguém está ali; sem resposta. Abro a porta e ligo a luz.

Roupas de criança estão espalhadas sobre a cama, na parte de baixo. Seis ou sete vestidos. Um deles tem manchas de sangue. Sobre o resto da cama, mais em cima, dois conjuntos adultos de roupas: um terno e uma combinação de blusa e saia floridas. Um conjunto ao lado do outro, arranjados à perfeição como se dois adultos que ali dormiam tivessem sido abduzidos e tudo que restara fossem as roupas do corpo. Os trajes tinham feição de velhos. Ambos estavam cobertos de manchas vermelhas, já secas. Algumas delas redondas, outras retilíneas, como resíduos de sangue que voou com violência. Entre o par de vestimentas, uma foto sépia. Nela, um casal sorria com uma menina no meio.

Com uma tesoura ou faca, os olhos do casal tinham sido cortados. O sorriso da criança, rasgado.

Só nesse momento, notei que o choro de Rita parou.

Volto correndo a seu quarto. Flagro Adriana sobre Rita. Com uma das mãos, tampa a boca da filha enquanto com a outra segura uma faca. A menina resiste, se contorcendo e tentando gritar, mas tudo que emite é abafado.

– Adriana!

Ambas me olham. A mãe tem desespero nos olhos.

3

Adriana se levantou, mantendo o olhar fixo em mim. Segurava Rita junto a si com uma das mãos, que também tapava a boca da filha. Ela foi seguindo com cuidado a parede, me obrigando com a sua faca a manter distância. Quando enfim chegou à porta por onde eu há pouco tinha entrado, gritou:

– Fique aí! Sem sair!

Sua expressão era perturbada. Se na minha visita anterior, ela já demonstrava temor, agora se tornara um verdadeiro animal, desesperado e capaz de tudo para manter a própria vida. Acredito que só uma última fagulha de humanidade a impedia de concretizar o que estava muito próxima de fazer.

– Adriana, me escuta. Não faça isso. Você não sabe…

– O quê? Vai dizer que não sei o que estou fazendo? Sei muito bem.

– Não, você não sabe. Escuta, eu entendo o que aconteceu com você. Sei que você é órfã.

Antes mesmo que eu tivesse terminado de pronunciar aquela palavra maldita, órfã, o seu rosto já tinha se contraído. Os seus olhos, antes apenas vermelhos de desespero, tornaram-se também marejados. Adriana chorava, como deve ter tanto feito na escola Jardim Verde, todas as vezes em que seus colegas escreviam antes da primeira aula aquelas quatro letras em sua carteira, antes que ela chegasse e, ao ver o que tinha sido feito, pudesse apenas então se sentar e engolir a raiva e as lágrimas – sua vontade, em cada um daqueles dias, era de não ficar ali, era de fugir para sempre, de viajar para uma terra onde ninguém conhecesse o seu passado. Era essa mesma Adriana do passado que chorava agora à minha frente.

– Como você sabe? Você era um deles? Você estava lá? Estava? Estava, não, estava? No meio de toda aquela turma, que tanto me aporrinhou, tanto me encheu o saco, tanto fez de tudo para que eu nenhum dia esquecesse que meus pais não estavam mais vivos.

– Adriana… – dava passos aos poucos, receoso do que ela poderia fazer consigo, ou pior, com a filha, que ainda estava à sua frente, impossibilitada por uma das mãos de Adriana de se expressar. Tudo que restava a Rita era arregalar os olhos e mirar em volta, buscando entender o que acontecera com sua mãe.

– Sim…você estava ali, no meio de todos. Mas agora sei o que fazer. Não vou deixar a minha filha passar pelo que passei. Não deixarei ela perder cada noite de sono, como perdi, repassando contra a vontade todos os eventos do dia e lembrando à força de cada momento em que aquela palavra suja foi dita. Aqui e agora, cuidarei para que ela tenha uma vida muito mais tranquila do que a minha. Fazendo com que ela vá dessa para outra.

Gritei “Adriana, NÃO!” me arremessando em sua direção, disposto a fazer de tudo para impedí-la. Não a alcancei a tempo. Um jorro fez voar sangue em minha direção, em meus olhos. Não conseguia enxergar nada. Gastei um tempo limpando o rosto com as minhas mangas, desesperado para que pudesse ver algo. Até que pude enfim abrir os olhos.

– Mamãe!

Adriana estava no chão, a menos de um metro de mim. Tanto seu corpo como o de Rita estavam ensanguentados. Impossível saber de imediato o que acontecera. Enquanto a menina permanecia em pé, gritando pela mãe, me abaixei para retirar a faca das mãos de Adriana, que gemia algo incompreensível, baixinho. Ao ter a lâmina em minhas mãos, notei que ela estava limpa. Aquela faca não tinha cortado ninguém.

Em meu desespero não notara que havia outra pessoa no quarto. Imóvel e camuflado pela escuridão do corredor mal-iluminado, não percebi o volume que preenchia no vão da porta. Era um homem que também tinha uma faca em mãos. Essa sim, reluzindo vermelha.

– …Caio?

Ele assentiu com a cabeça. Finalmente, se abaixou e abraçou a filha, que parecia estar catatônica.

– Desculpa, filha. Não notei antes tudo que estava acontecendo. Precisei lhe salvar de mamãe do pior jeito…agora somos só nós dois. Ficaremos bem, filha. Prometo.

Processei aos poucos tudo que tinha acontecido, observando a figura daquele pai, agora enfim na luz do quarto, abraçando a filha, enquanto a mulher que ele recém tivera que matar jazia deitada. Duas pessoas testemunhavam a cena de carinho entre pai e filha: um vivo e uma morta.

Dois dias após, reencontrei pai e filha no velório. Você até acha que cada evento desses será único. Você talvez até deseje que o seu seja o mais único de todos. Não passa de uma ilusão. Todos são iguais. Muita gente de preto, um clima de merda, alguns amigos e outras tantas pessoas que você mal conhece, todas dizendo que lamentam por tudo. Os momentos antes da morte, estes sim é que são únicos. Quem está presente jamais esquece.

Caio foi inocentado da acusação de feminicídio por um júri popular. Antes disso, tiveram que ouvir testemunhos: meu, do próprio Caio, da Rita. O advogado contratado por Caio fez uma defesa contundente de como o cliente agiu apenas em prol da vida da própria filha. O momento que todos, defesa e acusação, aguardavam foi quando ele chamou Rita para dar seu depoimento. Mesmo que este fosse incompleto, abalado pela emoção e pela pouca idade da testemunha, era essencial, pois ninguém, literalmente, estivera mais próximo da mãe em seus últimos momentos. Três dos jurados ao fim precisaram limpar suas lágrimas, enquanto uma senhora não parou de repetir um só instante o sinal da cruz.

Nunca fui capaz de me distanciar de Rita e Caio. Além de ainda tê-la como aluna quando ela foi capaz de voltar às aulas, visitava-os ao menos uma vez por mês. Passamos os Natais seguintes juntos, já que eu gostava de preparar a ceia – tradicionalmente quem fazia isso no lar deles sempre fora Adriana – e não tinha para quem fazer isso. Rita, após o choque inicial, pareceu se recuperar rapidamente. O psicólogo infantil com quem fazia acompanhamento relatou a Caio que a filha, quando falava da mãe, sempre o fazia lembrando-se dos momentos ternos entre as duas. Ao fim, sua memória parece ter apagado a maior parte do que não valia mesmo a pena lembrar. Os desenhos também tinham parado, ao que tudo indicava.

Foram dois bons anos assim, até que o acidente premeditado um dia pela filha finalmente veio. Voltando da feira, já perto de casa, Caio se distraiu, estava com pressa, talvez estivesse apertado, ou com saudades da filha, não sei. Atravessou a rua sem olhar. Foi atropelado por um carro preto, enquanto Rita observava tudo da janela.

Só naquele momento me recordei do desenho do carro preto. Do homem ensanguentado. Da menina que assistia à distância.

Talvez tudo estivesse escrito e todo o carinho e atenção do mundo por parte de Caio não seriam capazes de alterar o seu destino. Talvez seja assim que as coisas funcionem.

Me perguntei várias vezes desde então se toda a tragédia não foi causada pela existência em si dos desenhos. Caio mataria Adriana e então seria atropelado se não existissem a princípio os desenhos de Rita? O que foi causa e o que foi consequência? Os desenhos foram a motivação original ou mera previsão inocente do futuro? Penso que jamais saberei.

Não tinha como deixar Rita abandonada. Tendo sido nos últimos dois anos a pessoa mais próxima da família, e estando em idade legal, adotei-a.

Algumas noites, acordava assustado, pensando em tudo que tinha acontecido. Se Rita em algum nível sabia, se ela podia ter sido manipuladora a esse ponto. Me via subitamente entendendo Adriana: como se proteger de alguém que você ama e ao mesmo tempo prevê sua morte? Seria dar cabo daquele problema a única saída? Meu Deus, isso jamais poderia ser pensado por um pai ou mãe.

Nesses momentos, quando minha mente era incapaz de dissipar esse raciocínio friamente lógico, eu batia em sua porta perguntando se estava tudo bem. Todas as vezes, em pouco tempo, ela me respondia, dizendo que sim, que agradecia por eu tê-la recebido, e que me amava como um pai, enquanto os dois se abraçavam.

Assim se seguiu até que Rita fizesse quinze anos. Eu já não dava mais aula no Jardim Verde. Tinha ido para uma escola onde me pagavam melhor. Em seu aniversário, dei um jeito em relação ao rodízio de aulas para permanecer em casa, para que pudesse passar todo o dia do aniversário da minha filha junto a ela.

Abri às sete da manhã a sua porta segurando seu presente, um notebook novo que tinha comprado de fora.

– Filha, parabéns! Olha o que trouxe…

Esperava-a encontrar já levantada, como era seu costume, uma adolescente que nunca gostou de ficar até tarde na cama. Naquele dia, entretanto, se escondia de corpo inteiro embaixo dos lençóis. Era uma manhã quente, não entendi. Estaria doente?

– Filha, está tudo bem?

Puxei o lençol para poder ver seu rosto. Estava inchado de lágrimas. Perguntei, já nervoso, o que tinha acontecido. Ela, sem dizer nada, apenas gesticulou com a cabeça em direção ao outro lado do quarto. Nada tinha ali, só uma parede. Sem entender, dei a volta na cama.

No chão, havia uma folha, desenhada com o traço inconfundível de Rita, que eu conhecia há oito anos.

Abaixei-me para ver melhor o que estava desenhado enquanto temores represados transbordavam, anos esquecidos vindo à tona como uma enchente incontrolável.

No papel, havia uma janela por onde se via a lua. Um homem tremendo de medo estrangulava uma moça deitada. Moça cujos olhos saltavam para fora como os de uma velha e puída boneca de pano. As feições eram claras e reconhecíveis. Eu e Rita.

O Relato de Raquel

Meu nome é Raquel. Não posso revelar meu sobrenome, pois esse relato é real e é capaz de ele se espalhar facilmente pela Internet.

Não entendia o poder que um perfume tem até uma tarde de quinta-feira. E não tô falando de como ele pode atrair alguém. Esse existe, claro. Mas falo de outro poder.

Sou normal, nem muito bonita nem também tão feia. E assumo que mais pra gostosa do que bonita, eu mesma pelo menos acho isso.

Estava nessa época no Ensino Médio, que, graças a deus, já terminei. De vez em quando uns professores me olhavam com aquela cara que todo mundo sabe que o que significa. Ele quer me comer. Escrotos. Alguns eram passáveis, mas nunca ia dar bola pra eles. Não queria ficar conhecida como a aluna putinha que dava pra professor.  Já bastavam meus colegas querendo me pegar.

Talvez por ter tomado corpo mais cedo que a maioria das outras, talvez por ser gente boa, sempre achavam que eu estava dando mole. Uma vez um colega pegou na minha bunda no corredor, saindo da aula. Não dei um tapa, empurrei mesmo na hora, sem pensar. Queria dar uns murros, mas não sabia como. Não sei lutar. Uma galera ficou rindo na hora. No final, pegamos detenção, mas não me importei. Gostei de ficar em casa vendo vídeos ao invés de ir pro colégio.

Gosto de vários tipos de vídeos. Sou meio fanática do youtube. Mas assumo que curto, em especial, os de morte. Snuff, chamam. Descobri quando tinha uns 13. Hoje tenho 16. Já curtia nessa época ficar procurando no google pelos sites mais assustadores que era capaz de achar.

Quando descobri que existia uma coisa chamada snuff, uma categoria de vídeo, digo, fiquei sem conseguir dormir. Isso porque já tinha passado a madrugada anterior, no notebook, vendo vídeo a noite toda. Não são tão fáceis de achar, é claro, mas, pra quem entende, como eu, rola. Meu pai trabalha com tecnologia. Me ensinou bastante sobre internet, como evitar hackers, quais emails abrir, quais emails deletar sem abrir. Acontece que também aprendi o lado errado da coisa. Paciência.

No momento em que fui pra cama, finalmente, às seis da manhã do domingo, pra que minha mãe não me achasse acordada, não foi por medo que eu não consegui dormir. Foi por excitação. Não sexual, tava ainda começando aos poucos a aprender o que era isso. Excitação de alma mesmo. A coisa mais linda do mundo uma coisa daquelas, sabendo que não era efeito especial nem nada. Gente.

Tinha um colega de escola. O Bruno. Bruno era gente boa. Era um pouco gato, mas não era essas coisas todas. Sei que várias meninas queriam pegar, e várias dessas ele já tinha pego. Sei lá o que todo mundo via nele de tão enlouquecedor. Talvez a confiança. Quem sabe a experiência, que era muita pra época, ou parecia ser muita.

Sei que um dia eu e Bruno, com quem eu quase nunca falava, acabamos por ter que fazer um trabalho juntos. Aquela merda que os professores adoram de puxar nome de grupo pro trabalho no papelzinho. Porque não querem que a gente faça com quem já é muito amigo, ou pior, que a gente faça com os cdfs, os bem virjão mesmo, pra sugar eles. Eles vão querer fazer pra gente, afinal, na esperança de parecerem legais e assim a gente entender a beleza interior e querer dar uns beijos neles. Nunca funciona.

Bruno teve a iniciativa de me chamar pra ir na casa dele. Beleza, fui. Não me arrumei muito, mas não era tão ingênua, passei um perfuminho, que tinha ganhado do meu pai tinha pouco tempo.

Chegando lá, a casa tava vazia. Digo. Não toda vazia. Ele tava lá. Claro. Era um apartamento com cara de rico. Ele foi legal, me ofereceu água, umas frutas. Me ofertou bolo. O bolo estava bastante bom. Perguntei se era a empregada que tinha feito. Ele disse que sim. Eu comentei que gostava de fazer, também. Podia fazer algum dia pra ele, disse, sem nem pensar direito. No fim, pediu que eu ficasse à vontade, me sentisse em casa.

A gente foi fazendo o trabalho. Era de História do Brasil, odeio. Mas não queria bombar. Ele até que era um pouco aplicado, mais que eu ao menos, nunca consegui me interessar pelos assuntos do colégio, e não tinha ideia do que iria fazer depois que terminasse o Médio. A real é que talvez ainda não tenha.

A gente ficou no quarto dele, cada um com seu note, procurando umas coisas pra fazer o trabalho. Brasil Império. Wikipedia, uns sites que uns professores idiotas montam na internet porque acham divertido, aquela coisa. Todo mundo fazendo trabalho pega um pouco de cada lugar, mexe bastante, troca umas palavras, junta tudo e entrega.

A gente já tava lá tinha umas três horas. Porta fechada, tal. Eu tinha colocado umas músicas, Linkin Park, é antigo, mas eu gosto, ele não conhecia, mas também gostou.

Uma hora os dois cansaram de ficar dando ctrl+c e ctrl+v nos sites. Nisso ele perguntou se eu não queria trazer a cadeira pro lado dele, pra gente finalmente ver o texto juntos. Tranquilo. Quando sentei do lado, não tinha passado nem um minuto, ele elogiou meu perfume.

Eu fiquei um pouco vermelha, mas gostei. Sei lá. Achei simpático. Passou mais um tempo, a gente já tava bem próximo, acabamos ficando mais perto um do outro enquanto líamos juntos e cada um queria escrever umas coisas, ele virou o rosto pra mim, e eu sabia o que ele buscava com aquilo.  Dei uns segundos, e quando virei o rosto também, a gente se beijou.

Ficamos nos beijando por um tempo. Foi bom. Parece que a experiência dele ajudava pra algo mesmo, era melhor nisso que os outros caras meio retardados que eu tinha beijado até então. Parávamos um pouco pra continuar, depois nos beijávamos mais. Seguimos assim por um tempinho, não sei se chegou a meia-hora.

Quando a gente já praticamente não avançava mais no trabalho, e só tava se pegando, ele perguntou se eu não queria ir pra cama. Não tem ninguém em casa, ele disse.

Eu não queria parar ainda, então aceitei. Na cama, ficamos nos beijando mais, ele começou a passar a mão nos meus peitos, os bicos tavam ficando um pouco duros. A real é que eu era virgem ainda. Tava nervosa pra caralho. Mas não tava ruim.

Uma hora percebi que, se deixasse, o negócio ia até o final. Fiquei tensa. Não queria naquela hora, nem com ele. Nada contra. Mas só não tava desejando isso. Do nada, ele se levantou, e me deixou na cama. Perguntei o que ele tava fazendo. Ele disse que tinha ido pegar camisinha. Foi quando eu falei que não tava a fim.

Ele perguntou porque. Eu disse que não queria, não tava querendo daquele jeito. Ele perguntou, mais alto, que de jeito então eu queria. Eu disse que não sabia, só tinha certeza que não daquele jeito, nem naquela hora. Já tava sentada na beira da cama, me vestindo.

Ele falou que tava tranquilo, não tinha problema. Não era errado eu não querer. Eu fiquei aliviada na hora. Porém, logo depois de falar aquilo, ele trancou a porta, tirou a chave, e aumentou a música. Tava tocando Numb na hora. Disse que eu infelizmente não ia ter escolha.

Ele subiu em cima de mim, tirou a roupa que eu tinha acabado de colocar e disse que quanto mais rápido terminasse tudo, melhor. Nem colocou camisinha. Puxou minha calcinha, deixando ela ainda nas pernas, acabou rasgando. Enfiou em mim e foi até o final. Gritei, claro. Surrei ele, também. Arranhei e mordi. Pra ver se ele parava. Não parou. Desisti. Não tinha o que fazer. Só esperei acabar.

Voltei pra casa do jeito que tava. Não fizemos mais o trabalho depois daquilo, claro. Ao menos não naquela tarde. Quando eu tava saindo, nem tinha conseguido chorar ainda, ele falou que a gente tinha que terminar o trabalho. E que seria na quinta-feira seguinte. E que eu tinha que ir na casa dele. E que se eu não fosse, ou falasse qualquer coisa, ele iria espalhar que tinha me comido. E que se eu me comportasse direito, ele não iria contar nada pra ninguém. Não iria contar que tinha me comido.

“Você não quer ficar conhecida como a guria que veio pro meu quarto e deu pra mim sem nem me conhecer, né? E é o que todo mundo vai saber se eu contar.”

Também me mandou tomar a pílula do dia seguinte.

Naquela noite, assisti muito vídeo snuff. Vi todos que já tinha visto. E então revi. Nos dias seguintes, revi de novo. E por fim mais uma vez.

Brincadeira. Não parei aí. Vi mais. E procurei novos. E então assisti esses também mais uma vez. E outra.

Eu não queria que ele achasse que eu não gostei do que ele tinha feito comigo. Eu gostei. Ele ia entender como. O meu modo de agradecimento seria um bolo.

Na quinta-feira, voltei pra casa dele. Dessa vez muito mais arrumada do que antes. Coloquei minha melhor roupa de passear no shopping e levei o bolo.

Cheguei na casa dele. Vazia como antes. Ele sorriu quando abriu a porta. Perguntou como eu tava. Se eu tinha me comportado direito. Eu disse que sim. Sorrindo também. Falei que na verdade tinha gostado de tudo. E até tinha feito bolo para ele. Ele aceitou.

Fomos para o quarto dele. Ele disse para eu me sentir à vontade, em casa, que nem já tinha dito na outra vez. Agradeci. Ele trouxe dois pratos pra gente. Eu disse que ia lhe servir. Eu mesma cortei o bolo para ele, na cozinha, enquanto ele me esperava no quarto. Eu sabia quais partes podia servir ou não. Quais partes podia comer ou não.

Trouxe os bolos pra gente. Ele comeu a parte dele. Eu também comi a minha. Ele adorou. Engoliu muito rápido. Perguntou se tinha mais. Se eu podia pegar mais. Eu disse que sim. Sorrindo.

Servi mais pra ele. Ele disse que a empregada nunca tinha feito um bolo tão bom. E que eu precisava ensinar pra ela como fazer. Ele falou que ia ficar satisfeito com só mais um pedacinho, e que então não pediria mais. Perguntou se seria muito abuso eu pegar só mais aquele pra ele. Respondi que não. Sorrindo.

Ele devorou o terceiro um pouquinho mais devagar que o segundo. O que significa que ainda foi bem rápido.

Que bom, porque se ele mastigasse com bastante cuidado, talvez percebesse os pedaços do frasco de perfume todo quebrados que eu tinha espalhado na metade dele. Tinha feito dois bolos, na verdade. Dois meio-bolos. Um para ele e um para mim. E com a cobertura, não dava para notar que eram dois.

Ele nem fingiu que ia fazer o trabalho. Perguntou se eu não queria relaxar um pouco antes da gente escrever mais. Descansar, sabe. Eu disse que sim. Sorrindo.

A gente estava fazendo de novo. Não muito diferente da vez anterior. Eu não estava mais sorrindo.

Ele nem tinha gozado ainda. Uma hora ele parou o movimento e fez uma cara estranha. Saiu de cima de mim. Disse que estava sentindo alguma coisa. Meio ruim. Eu entendo. Foram três pedaços, afinal. Bem grandes. Fui generosa com ele. Pedaços grandes. Assim como os do frasco. Esses também eram grandes. Perguntei o que é que ele estava sentindo. Levemente sorrindo.

Ele começou a vomitar. Bolo. Com sangue. Muito sangue. Perguntou o que estava acontecendo, que caralho era aquilo. Também acho que tava chorando.

Peguei meu celular. Fiquei filmando. Ele mal podia reagir. Só fazia vomitar. E em cada vomitada saía mais sangue. Ele olhou pra mim. Os olhos estavam vermelhos. Acho que ele queria tentar bater em mim, mas não conseguia. O chão tinha uma poça imensa, principalmente vermelha. Também tinham uns pedaços brilhantes.

Quando eu passei a achar que ele não tinha mais o que vomitar, e ele só fazia entortar a cara dum jeito horrível, com jeito de quem queria, mas não conseguia, gritar, facilitei o trabalho dele. Afinal ele precisava de mais espaço na garganta, ela devia estar toda cortada por dentro, com os vidros que entraram. E saíram.

Eu facilitei a vida dele. Peguei o maior estilhaço do frasco de perfume, que tinha ficado grande demais pro bolo, e enfiei na jugular dele. Foi tão fácil, achei que a pele fosse ter mais resistência. Saiu muito sangue. Tudo que ainda restava, digo. O que era bastante.

Enquanto via, e filmava, eu fiquei chateada que respingou sangue do pescoço na câmera, tornando metade da imagem um borrão vermelho. Queria ter gravado tudo, sem obstáculos. Mas hoje eu gosto. Deu um toque quase mágico.

Não houve espectadores nem ninguém pra incomodar. Afinal ele tinha se certificado de que a casa estaria bem vazia naquela quinta-feira.

Tomei banho na suíte dele, e troquei a roupa pela muda que tinha levado. Deixei a antiga num lixo. Fora do condomínio, claro. Em outro bairro, aliás.

No dia seguinte, na escola, ninguém estranhou. Nem vieram a suspeitar de mim. Parece que ele não chegou a contar mesmo de mim pra ninguém. Nem eu tinha dito pra ninguém que tinha ido na casa dele, nenhuma das vezes. No final, entreguei o trabalho sozinha. Só a parte que a gente já tinha feito antes. Não queria me envolver mais com aquilo. Deu pra tirar um 6.

Os pais demoraram a fazer a informação da morte chegar ao colégio. Quando soubemos, todo mundo ficou em choque. Já tinha se passado um mês, tava difícil manter a mentira de que era doença. Teve até missa na quadra, e homenagem do diretor. Ninguém jamais suspeitou de mim, parece.

Vi umas meninas chorando na missa, e depois também no enterro. Mas também tinham umas sorrindo.

Com o tempo abandonei o hábito de ver vídeo snuff. Quando quero relaxar, faço outra coisa. Saio. Vejo filme. Fumo maconha.Tudo junto, quando quero desestressar mesmo.

Mas nunca deletei o vídeo que eu mesma gravei. Filho único esse snuff meu. Toda quinta-feira à noite, sozinha no quarto, assisto. Enquanto passo em mim mesma um perfume da mesma marca que usava naqueles dias. E sorrio. Toda quinta-feira.

Telstar

Meu nome é Marcel. As coisas eram tranquilas onde cresci. Ao menos naquela época. Foi em Guaiatu, no interior de São Paulo, nos anos 70. Conhece? Imagino que não. Rapaz…não que a cidade ainda seja tão pequena hoje, mas naqueles dias eram só quatro ruas e umas duas ou três dezenas de casas. Além disso, o obrigatório: a prefeitura, uma escola, uma velha igreja, uma delegacia, um bar, um consultório médico, um barbeiro que fazia as vezes de dentista e um campinho pra jogar bola, que o povo aproveitava para também fazer bailes. O resto era mato mesmo. Mato e bicho.

*

Meus melhores amigos eram a Juliana e o Carlinhos. Juliana não gostava de brincar de boneca com as irmãs ou as outras meninas, preferia jogar bola com a gente. A mãe não gostava muito disso, mas não chegava a segurar a filha em casa. Mal terminava o almoço, ela pedia a benção ao pai e saía para nos encontrar no terreno baldio ao lado da igreja, onde já a estaríamos esperando. De vez em quando uma das senhoras mais velhas, daquelas que viviam rezando, passava na frente do terreno ao sair da reza e ficava olhando feio pra gente do início ao fim do quarteirão, mas o padre mesmo nunca disse nada. A questão é que não conseguíamos jogar no campinho. Lá eram onde os meninos mais velhos e os adultos jogavam, e eles davam cascudos na gente se tentássemos jogar junto. Como nenhum dos três gostava de apanhar, preferíamos brincar assim, separados, do lado da igreja. A cruz fazia uma sombra que nascia bem do lado do terreno e terminava a tarde toda esticada sobre a linha do gol.

A nossa bola preferida era a que Carlinhos tinha ganhado de presente de aniversário naquele ano. Tinha se tornado o xodó da vida dele, dormindo abraçado com ela todas as noites. Eu até ficava envergonhado da minha velha bola, mas ele dizia que não era para se importar com isso. A dele, bonitona, era uma Telstar da Adidas. Tinha sido a bola oficial da Copa de 70. Seus pais tinham ido comprar na capital para o presente de dez anos de Carlinhos. Ele tinha passado o mês anterior inteirinho ouvindo cada jogo da Copa, não só do Brasil como de todas as outras seleções, inclusive chorando junto com os pais quando fomos campeões. Depois que a seleção já tinha desfilado em Brasília e todo mundo tinha seguido com a vida, ele ainda estava lá, lembrando de cada lance e da respectiva narração. A memória dele sempre foi melhor que a minha. Ficava chutando pela casa a velha bola de couro já comido que tinha herdado do irmão mais velho, quebrando pratos e portas de armário enquanto fingia ser o locutor da Bandeirantes narrando o segundo gol de Jairzinho na Thecoslováquia. O pai até escondeu a bola uma, duas, três vezes, mas Carlinho sempre achava de novo e voltava a brincar dentro de casa. Encheu tanto o saco dos pais, querendo imitar Pelé até na hora da sopa, que seu pai uma noite lhe pegou no colo e, sem elevar a voz, propôs um um trato.

“Carlinhos, meu filho. Se a gente lhe der de aniversário a tal da bola da copa, a importada, você promete que deixa a gente em paz, brincando apenas lá fora?”

“Sim! Sim, pai.” – Todos os dentes dele, de leite ou permanentes, estavam à mostra.

“Tá certo. A gente compra então. Mas no dia que eu chegar em casa e lhe encontrar brincando dentro de novo, já sabe, né? Rasgo a bola com facão e jogo fora. Importada, nacional, seja qual for.”

Isso não chegou a impedir que ele brincasse com o novo presente em casa, mas Carlinhos foi esperto ao menos para não quebrar mais nada. Logo ao ouvir que um adulto tava entrando, ele largava a bola, deitava de bruços na cama e fingia que estava estudando.

*

Uma tarde, os três para variar estávamos brincando. Eu no gol, Carlinhos e Juliana brigando pela bola. Quem roubasse e fizesse o gol em mim marcava ponto. Pode parecer engraçado que Juliana estivesse na linha, e nao eu, mas ela sempre foi melhor de jogo que eu. Uma hora Carlinhos, tendo dado um drible em Juliana, cortou para o lado e deu um bicão. Eu não tive coragem de pegar, só fechei os olhos e protegi a cabeça. Nem tinha aberto ainda os olhos quando ouvi um “cléin!” bem alto de vidro quebrando. Todo mundo prendeu a respiração. Quando finalmente abri os olhos e levantei devargazinho a cabeça, vi que Carlinhos e Juliana estavam brancos. Me virei. Um dos vitrais do fundo da igreja estavam quebrados. Os três fizeram aquele som de puxar saliva que criança faz quando sabe que ferrou tudo.

“Puta que pariu!”, soltei.

“E agora, Carlinhos? O padre vai te matar!”, Juliana disse.

“O padre? Tô preocupado é com o que meu pai vai fazer comigo, carái!” (Carlinhos evitava falar palavrão em frente a Juliana, pois o pai o tinha educado assim. A situação, no entanto, o pedia). “Porra, porra, porra, e agora? Ai, meu Deus, ai, meu Deus.”

Carlinhos paralisou. Parecia prestes a chorar quando me veio uma ideia brava e corajosa.

“Ei. Porque você não vai lá dentro, pede desculpas pelo vidro e então pede de volta a bola?”

“Tá louco? Já viu como é lá dentro? Todo escuro? Tenho medo. Não gosto de igreja.”

“É simples. Fala que seu pai vai pagar o conserto.”, eu disse.

“É, Carlinhos, fala isso. Para de chorar e age como homem.”, Juliana entrou para o coro.

Carlinhos não ouvia a gente e já ia embora, desconsolado, balançando a cabeça.

“Vai ficar sem a sua bola, então? Sem a sua Telstar?”, eu perguntei.

Carlinhos parou no meio do passo.

“Não posso ficar sem minha Telstar.”

“Não, você não pode, Carlinhos.” (Pensei em dizer também “Como eu e a Juliana vamos ficar sem a sua Telstar?”, mas não quis parecer aproveitador naquela hora.) “Vai tomar uma atitude em cima disso, então, porra?”

“Sim! Vou. Vou sim, carái. Vou voltar e falar com o padre.”

“Sim, você vai voltar e falar com o padre.”

“E você também vai, Marcel.”

“Hein?”

“Sim, você vai. Não vou levar a bronca sozinho.”

“Como assim? Você que chutou! Eu não vou.”

“Você tava no gol. A bola era sua. Não pegou porque não quis. Agora vai junto. Aliás, na verdade, acho que era para você ir sozinho. O vacilo foi seu.”

“Nem vem. Você chutou alto demais. A culpa é sua.”

“Como você sabe que altura chutei se você tava de olhos fechados?”

“…”

“Vão os dois. Eu fico aqui do lado de fora, porque não tenho nada a ver com a história.”, Juliana disse.

“Não! Vamos os três. Tamos juntos ou não, carái?”

“Não vou. Vão vocês dois. Sou menina e vou ficar do lado de fora.” Diante desse argumento inapelável, os dois abaixaram a cabeça.

“Resolvido então. Vamos os dois.”, eu disse, por fim.

“Mas, Marcel, você já viu a cara do padre!?”

“Que tem a cara dele?”

“Minha prima se casou aqui na igreja. O padre me dava medo. Parecia o vampiro, do cinema. Falava lento, sabe? E as mãos dele pareciam tremer. E tinha uns olhos…”

“Deixa de besteira. Isso é coisa de criança. Vamos lá os dois.” Falei assim pra parecer macho, mas a verdade é que tava morrendo por dentro.

“Mas foi você que chut…”

Não teve jeito. Tive que pegar no braço dele e levar. Eu sentia medo, mas, se estavam os dois juntos, o cagaço diminuía. É sempre melhor estar com os amigos nessas horas. Chegamos junto à porta pesada de madeira. Olhei para Carlinhos, que finalmente pareceu recuperar um pouco da cor do rosto. Ou isso ou eu estava com tanto medo que já não via as cores direito. Ele respirou fundo e deu três batidas na porta. Bum. Bum. Bum. Cada batida, eu me cagava mais. Ninguém respondeu. A igreja podia estar vazia. Nesse caso, não teríamos que levar bronca de ninguém naquela hora, só mais tarde em casa, quando Carlinhos falasse que perdeu a Telstar. Aí eu já não estaria mais junto. Tava respirando aliviado, até que a porta abriu. Meu coração disparou. Não parecia ter ninguém ali que a tivesse aberto.

Dei um pulo para trás quando enfim ouvimos uma voz sair lá do fundo. Parecia mesmo a de um vampiro do cinema, meio tremida.

“Foram vocês que quebraram a janela, meninos?”

*

Ouvimos os ecos da pergunta do padre virem e voltarem, até que o ar ficou parado, sem que nenhum dos dois tivesse respondido a pergunta.

“Bom…não foram vocês?”

Carlinhos e eu nos olhamos. Eu já estava prestes a abrir a boca quando o padre falou antes.

“É que…”

“Entendo. Não foram vocês. Sinto-me grato. Odeio quando as crianças não assumem seus erros e pecados.” Levantou a sobrancelha direita enquanto falava. “Posso, portanto jogar isso aqui fora, não?”

Nos revelou a mão que até então escondia por trás da batina. Sobre ela, a Telstar. Carlinhos deu um salto.

“Não, seu padre! Desculpa! Fomos nós dois.”

“Isso, seu padre. Fomos nós que chutamos. Bom, na verdade ele chutou, eu só es…”

“Como assim? A culpa é sua, eu já disse! Se você não fosse tão bich…”

“Meninos! Silêncio. Silêncio.” O semblante vampiresco do padre se alterara. Parecia mais terno. Quase familiar, como o de um avô que sorri quando recebe o neto em casa. “Venham, venham. A casa de Deus não é local para disputas, ainda mais entre crianças como vocês.”

Ele se virou e seguiu em direção ao altar. Em momento algum soltou a bola. Segurava-a consigo do lado direito. Eu e Carlinhos nos olhávamos, dando os primeiros passos naquele ambiente escuro, talvez só um pouco menos escuro agora pelo facho de luz que entrava pelo vitral quebrado. Um sabia o que o outro estava pensando: e se apenas pegássemos a bola e voltássemos correndo, sem nunca mais brincar ali no terreno ao lado? Isso passava não só pela minha como certamente pela cabeça dele também, mas nenhum dos dois teve coragem. Seguimos em frente obedientemente.

Ele puxou uma cadeira que ficava ao lado do altar e sentou-se nela com a bola no colo. Ordenou que os dois se sentassem no primeiro banco, lado a lado, em frente a ele.

“Já tinha visto várias vezes vocês brincando aqui do lado. Também tem uma menina, não? Ela não estava com vocês hoje, por acaso?”

Nenhum dos dois respondeu. Ele era até gentil, mas os dois se sentiam amedrontados demais naquele ambiente para dar qualquer pio.

“Hm…sabia que eu tenho uma grande admiração pelas atividades esportivas?” Ele falava isso não olhando para nós dois, mas para a luz que entrava pelo vitral. Aos meus olhos, aquilo era bonito. Podiam deixar a igreja daquele jeito. Ficava com mais cara de casa de gente. “Admiro bastante os esportes, crianças. Acho que isso gera adultos fortes, saudáveis para a comunidade. Pena que eu não tenho mais idade para isso. Jogava bastante com a idade de vocês, imaginam? Há há…”

“Um-hum.”, foi o máximo de que fui capaz.

“Ah, sim…era um grande jogador. Hoje, com a minha velha carne, seria um desastre. Por isso sempre apoio as crianças aqui a jogarem. O que eu não posso mais fazer, elas fazem por mim. Também por isso nunca reclamei com vocês aqui lado. Sempre soube, evidente. De vez em quando espiava vocês jogando, daqui de dentro.”

Eu e Carlinhos, ao saber disso, nos olhamos. Não sabíamos o que tirar disso.

“Os coroinhas…dou muito estímulo para eles. Sempre os presenteio com bolas. Toda vez que um deles faz dez anos, meu presente é uma bela bola de futebol. Essa aqui – naquele momento, segurou a Telstar de Carlinhos com uma das mãos, admirando-a que nem os atores no teatro adoram fazer com caveiras – esse belo modelo, também foi um presente, não? Dos seus pais, imagino?”

“Sim, seu padre.”

“Muito bem. Você é de uma boa família. Já pensaram em entrar para o grupo de coroinhas? Podemos precisar de jovens como vocês. Não é só obrigação! Vejam…todos jogam bola juntos. Saibam, a maioria é pobre, uns pobres-diabos que aparecem aqui do nada, sem família, sem conhecidos. Sei que vocês são da região, de famílias respeitadas. Seus pais vêm aqui todo domingo. Mas não se interessariam em conhecer os outros garotos?”

“Pode ser, seu padre…”, Carlinhos disse. Senti que ele falava aquilo mais por submissão, e por o padre estar com a Telstar dele, do que por vontade real. Eu pensava o mesmo. Não era preconceito com as crianças pobres. Nós é que éramos muito tímidos mesmo.

“Bom, então posso contar com vocês? As crianças ficarão muito felizes em conhecer vocês. Já tem um time completo, mas vocês podem se dividir entre vocês para umas partidas de brincadeira.”

“Queremos conhecer elas sim, seu padre.”, eu disse. Dei a melhor interpretação de que era capaz. Ele só queria que a gente fosse obediente. Falei o que ele queria ouvir. Carlinhos olhou para mim meio surpreso e então consentiu.

“Sim, seu padre. Queremos sim. Vamos jogar bolas com elas.”

“Ótimo! Jesus fica muito feliz com crianças assim. Só tem uma coisa.” Nesse momento, ele abaixou a voz e aproximou a cabeça, como se fosse nos contar uma confidência. “É segredo. Porque algumas pessoas aqui de Guaiatu podem ter preconceito com crianças de fora. Então…” Aproximou mais ainda a cabeça das nossas. “…não contem a seus pais, tudo certo?”

Ambos consentimos.

“Perfeito. Aguardo vocês à noite. É depois da missa que as crianças jogam, para não chamar a atenção da cidade. Aqui no salão restrito que fica na parte de trás.” Nesse momento, apontou para o altar, ou o que ficava além dele. “Mas se lembrem de vir escondidos. Digam que vão dormir um na casa do outro.”

Estendeu a Telstar de Carlinhos para a gente, gentilmente. Carlinhos pegou a bola sem pensar duas vezes, enquanto falávamos “Obrigado, seu padre, obrigado” sem parar e saímos correndo em direção à saída. O velho padre apenas permaneceu nos observando, sentando.

Juliana nos aguardava impaciente do lado de fora.

“Por que demoraram tanto?”

“Ah, ele encheu nosso saco com uma história aí.”

Evidente que nunca voltamos. Nem continuamos brincando ali do lado. Não sabíamos o que o padre queria, mas a gente é que não ia cair naquilo. Na impossibilidade de usar o terreno ao lado da igreja, pois não queríamos mais ser vistos pelas velhas que viviam rezando e muito menos pelo padre que tinha assumido nos observar escondidos, fomos obrigados a nos misturar com os outros que jogavam no campinho. No início, odiamos. Carlinhos queria chorar de raiva toda vez que alguma outra criança, mais pobre, olhava a sua Telstar com ar de quem ia roubá-la. No fim, nunca aconteceu nada, e passamos a gostar cada vez mais das pessoas ali. Víamos o campinho como uma extensão de casa, e os vizinhos que também brincavam ali, como uma extensão da família. Depois de dois ou três anos, até tínhamos nos esquecido da história do dia em que quebramos o vitral.

*
Eu fui fazer faculdade na capital, enquanto Carlinhos e Juliana permaneceram. Eles namoraram e depois de um tempo, uns oitos anos depois de mim, decidiram sair de Guaiatu também. Eu estava com minha própria família em São Paulo, tentando equilibrar trabalho, crianças, a tal da vida urbana, quando recebi um convite surpresa. Fazia anos que não falava com eles. Tinha perdido o contato na correria, coisas da vida. Eles tinham decidido finalmente se casar na igreja, o que nunca tinham feito, para choque dos pais. E teria que ser na velha igreja de Guaiatu, para facilitar para a família de ambos. Fazia décadas que eu não voltava lá e sequer tinha notícias. No dia anterior à festa, esposa e filhos no carro, fiz a aguardada viagem de retorno.

O casamento foi incrível, como sempre imaginei que seria. Os dois tinham sido muito apaixonados desde a adolescência e assim seguiam. Num dado momento da festa, Carlinhos me puxou prum canto, no lado de fora, com dois charutos. Me ofertou um deles e acendeu ambos com um fósforo que estava no bolso do paletó alugado. Estávamos meio bêbados já, em especial ele.

“Marcel, meu querido Marcel. Reconheceu que a igreja não é a mesma de quando éramos criança?”

Eu estava tão concentrado na festa e em ver os velhos rostos, tentando reconhecer as pessoas, que nem percebi a mudança na arquitetura. Estava toda diferente.

“Parece outra igreja.”

“E é. É o seguinte. Tá com o coração em dias? Porque vou lhe contar agora algo que você nunca vai esquecer.”

“Hum.” Permanecia com o charuto em mãos, olhando para ele, intrigado.

“Você saiu daqui faz muito tempo. E eu a Ju permanecemos um pouco mais, você sabe. Então você talvez tenha ficado sem saber de algumas coisas que nós soubemos. Pouco depois que você saiu, o padre daqui, se lembra dele? Ele faleceu.” Só então as memórias, pouco a pouco no início mas depois rapidamente, caminharam de volta à minha mente. Culminando com o dia do vitral quebrado.

“Ele morreu?!”

“Pois é. Ataque cardíaco. Normal, já tinha mais de oitenta. O padre novo enviado pela diocese decidiu que a igreja estava muito velha, caindo aos pedaços. Nunca consertaram aquele vitral, para você ver!”, disse, gargalhando.

“E aí?”

“E aí que resolveram demolir tudo. Perda total, meu irmão. Puseram o prédio abaixo. E, bom…”

Percebi a hesitação dele.

“Fala logo, porra. Estou tendo uma síncope aqui já.”

“Se lembra das tais crianças do padre? As que jogavam bola? Os coroinhas?”

“Os tais coroinhas que seu pai depois disse nunca ter ouvido falar?”

“Sim! Eu até tinha esquecido da história. Veja, você talvez não tenha sabido porque a Igreja Católica abafou na imprensa, mas quem era daqui e morava aqui não teria como não saber…”

“Caralho, se você não disser logo, Carlinhos, pode ser o dia da sua vida, pode ser o dia que for, juro que vou lhe dar um murro, seu porra.”

Ele sorriu, lembrando-se das ameaças que fazíamos um ao outro quando moleques. Puxou fumaça do charuto olhando para cima, antes de continuar.

“Pois bem, meu velho Marcel. Não é à toa que os tais coroinhas eram sempre de fora. Sem família nem conhecidos, se lembra? Ninguém jamais estranhou a ausência deles. Por isso que não tivemos nenhum parente para comunicar quando achamos as valas, ao derrubar a velha igreja.”

“Valas?”

Foi então que ele quase colou o rosto no meu, falando baixinho. Olhos nos olhos.

“Acharam onze corpos de criança debaixo da igreja, cada uma abraçando uma bola. Foi assim que elas foram enterradas. O couro das bolas ainda estava lá, quase intacto.”

Deu dois tapinhas no meu ombro e voltou para a festa. Juliana já o chamava para algumas fotos.

Enquanto terminava o charuto, permaneci observando a cruz. Ela brilhava neon com as luzes do casamento. Só fui interrompido nos devaneios quando ouvi minha esposa gritar meu nome.

“Querido, o bolo do casamento acabou de sair! Vamos comer com as crianças?”

Tentei deixar aquela história de lado, fazendo-lhe o melhor sorriso de que fui capaz e me juntando à família. Apenas quando meu olhar se perdia em algum ponto indefinido e eu voltava a pensar nas onze crianças é que um dos meus filhos me perguntava se tava tudo bem. Eu respondia que sim, desconversando, enquanto repousava o copo de cerveja na mesa para que ninguém notasse minha mão tremendo.

[conto originalmente publicado em https://www.facebook.com/arquivosdeerebus/posts/344119242702091]

As Vozes

Nunca tinha ouvido vozes dentro da cabeça, até o dia em que uma me pediu para escrever essa história.

A voz me falava que coisas dementes tinham acontecido na nossa casa, onde eu morava com meu pai e meu cachorro. Disse-me que eu seria visitado por várias pessoas, todas mortas há tempos, que viriam para me mostrar através de visões o que sabiam. Avisou-me também que eu não precisava ter medo. A mim caberia somente registrar os relatos num caderno de capa amarela, para que os horrores passados na casa não permanecessem desconhecidos aos vivos. Isso me foi dito pela voz gentil, a primeira de todas que viriam. Tremi, pensei na possibilidade de estar enlouquecendo, mas no íntimo sabia que não. Sempre pensei que pudesse existir o além, apenas pensava que não seria por mim que ele buscaria fazer contato. Assumo ser idiota o bastante para me empolgar com o desconhecido e perigoso, mas não burro o suficiente para ignorar uma chance única quando ela aparece. Na dúvida, comprei um caderno de capa amarela – sim, a capa precisava ser amarela, a voz me dissera –, e deixei-o sobre o criado-mudo. Na primeira página, à lápis, anotei essas linhas que você lê.

Segui minha vida, fazia faculdade de administração durante o dia. Algumas semanas haviam se passado desde o primeiro contato e não houvera qualquer voz ou aparição no escuro, tampouco cadeira balançando, luz piscando, nada. Provavelmente eu tinha tido um surto, meu subconsciente devia estar querendo me dizer algo, quem sabe um complexo de édipo reprimido, sempre é o tal do édipo, dizem.

Uma noite eu estava sozinho na cozinha, à noite, jantando um macarrão ao molho sugo. Meu pai estava fora de casa. Situação perfeitamente comum, sempre foi tranquilo eu ficar sozinho. Costumava pôr músicas para disfarçar um pouco a solidão, mas nessa era apenas eu, o prato e o silêncio, com o nosso cachorro preso do lado de fora, nem latir ele latia. Ouvi então, num tom calmo, a voz de uma velha. Sim, vai ter que ser aqui mesmo, minha filha, abre as pernas, a bacia está pronta. Abre as pernas que já estou com a agulha limpa. Olhei em volta, obviamente não havia qualquer senhora, muito menos filha. No medo cheguei a gritar, perguntar quem era que estava ali, o que queria, mas sem resposta. Ao menos resposta para mim. Pois a voz continuou: não, não adianta, precisa ser agora, você sabe, o combinado era esse, o próximo pode ser seu, ele crescerá e se tornará um garoto lindo, um garoto lindo e branco, lindo e branco, mas esse é nosso, sete meses, era o combinado, é o melhor para todos. Sempre fui imaginativo, algo que achei que pudesse ser bom, quem sabe até proveitoso para a futura carreira profissional, mas naquele momento, meu deus, odiei, queria apenas ser opaco de imaginação, nada mais, e não houve jeito, pois meus pés já estavam molhados, como se eu estivesse dentro da bacia, e a voz da velha soava à minha orelha, como se ela estivesse apoiada nos meus ombros e falasse a centímetros, Sim, bem assim, a bacia já está com as ervas necessárias, alecrim, arruda e anis, é como está no livro, seu filho é sujo e precisamos limpá-lo, eu e seu pai sabemos o que é melhor para você, não adianta voltar atrás, filha, quem mandou ter um filho com aquele homem, aquele preto, aquele preto imundo, agora esse é nosso, você ficará feliz, nós ficaremos felizes. À minha frente estava lá ela, a filha, uma jovem, mais nova ainda que eu, de pernas abertas, e quem abria suas pernas era eu, eu era a velha, eu estava vendo o que ela viu sabe-se-lá em que década, e minhas mãos, digo, as da velha, que agora eram minhas, elas abriam a vagina da filha, e lá punham uma agulha enorme, sim, eu queria gritar, mas não conseguia, pois de mim só saía a voz da velha, dizendo abre mais, abre que não quero te machucar, só a criança. Eu queria parar de pôr aquela agulha mais e mais para dentro, mas não podia, pois não as controlava. O sangue passou a jorrar da filha, que gritava, e a velha, digo, eu, eu apenas pedia, quase cantava, como numa canção de ninar Dorme, dorme, meu bem, que a noite já vai passar, em minhas mãos saía o natimorto, o feto negro, ele caía na bacia, um ser desforme, que talvez não chorasse mas para mim chorava. Agora é a hora do ritual, que o sangue do filho, sendo o mesmo sangue do pai, derrame aqui, que do seu pai derramará. A filha gritava, ela queria fazer algo, mas estava prostrada, incapaz. Então as mãos da velha agarravam uma navalha e cortavam o pescoço do feto, o sangue jorrava, tornando a bacia um mar vermelho. Gritei e fechei os olhos. Quando os abri, estava na cozinha da minha casa, estava deitado de lado no chão. Não havia mais feto nem filha nem velha. Corri para o meu quarto, registrei tudo que pude no caderno amarelo, desse modo, desenfreado, não tinha como pensar nem como agir de forma mais útil. Apenas fechei todas as janelas de casa, tranquei as portas e dormi, ou tentei dormir.

Na manhã seguinte, mais calmo, acordei com meu pai perguntando para mim porque eu tinha espalhado o molho do macarrão em todo o chão da cozinha. Me xingou dizendo que eu tinha feito uma bagunça do caralho. Eu me limitei a responder que tinha sido o cachorro e saí antes que ele pudesse fazer mais perguntas ou imaginar se o cachorro poderia mesmo subir na mesa. Não tive capacidade de ir à aula nesse dia. Depois que todos já tinham saído passei duas horas no banho, tentando limpar o sangue do corpo. Não havia sangue para quem me visse de fora, mas por dentro para mim estava sujo, absolutamente sujo pelo sangue daquele feto. Ao final, enquanto me secava, olhando no espelho e querendo acreditar que, sim, a voz que ouvia saindo de mim mesmo era de novo a minha, as mãos que manejavam a toalha eram as minhas, ouço novamente a primeira voz, a que iniciou tudo. Essa foi só a primeira. Viva para saber e escreva.

Enquanto não sabia o que esperar dali para frente, minha única opção era a de seguir adiante. Descobri que odiava o que estava acontecendo comigo, e que provavelmente não suportaria outra visão. Tinha escolha? Provavelmente não.

Quem então era a velha da minha alucinação? Poderia não ter mais me indagado, poderia até ter fingido que nada daquilo tinha acontecido, mas os pesadelos não contribuíam. Claro, tive pesadelos. Tinha escolha? Provavelmente não.

Neles eu repetia e vivia novamente a cena, como a vi, como a vivi naquela noite na cozinha. De novo era a velha. De novo tinha o natimorto em mãos e derramava seu sangue. De novo acordava gritando sozinho na cama, que estava seca, porém eu mesmo me sentia encharcado. Não que tivesse me mijado. Eram a água da bacia e o sangue fetal que não abandonavam a minha pele. Em cada uma dessas noites, eu alcançava o meu caderno de capa amarela, e escrevia e escrevia. Punha em papel cada detalhe, palavra, tom de pele, derramamento de sangue que presenciara. Mas a verdade é não tinha nada de novo a acrescentar. Era sempre a mesma visão.

Num café-da-manhã, não resisti e perguntei a meu pai quem tinha morado na nossa casa antes da gente. Estávamos lá fazia apenas cinco anos, sendo que antes estava abandonada, até onde me constava. Ele respondeu que sabia apenas de uma família, que tinha morado lá nos anos 80. Pai, mãe e filha. O pai e a mãe eram bem mais velhos que a filha, poderiam ser até seus avós, todos tinham vontade de questioná-los quanto a isso, mas eles nunca permitiram haver intimidade com os vizinhos. Essa filha então fugiu de casa com trinta e poucos, sendo que jamais se soube para onde ela foi. O casal de idosos por sua vez morreu pouco tempo depois num acidente horrível. Ambos foram encontrados carbonizados no quintal, ali mesmo onde eles moravam. Onde eu moro. Perguntei, depois de minha espinha ter congelado, porque caralhos ele nunca tinha me contado essa história. Ele deu de ombros e respondeu, olhando para os lados, que achava tudo aquilo meio com cara de inventado. Perguntei quanto ao que aconteceu com a casa, se alguém tinha tido a coragem de morar aqui logo depois. Ele se resignou a fechar os olhos e se levantar para sair. Quando já estava na porta respondeu que não sabia de nada, mas que achava difícil o imóvel ter permanecido muito tempo vazio. As necessidades de habitação superavam qualquer superstição. Também disse que iria perguntar para os vizinhos mais velhos se sabiam de algo além disso.

O incidente inicial da visão na cozinha aconteceu em abril. Maio se passou sem maiores catástrofes, ao menos além dos pesadelos que àquela altura já haviam se tornado próximos de diários. Numa noite em junho, com medo de fechar os olhos no escuro do quarto – um temor que eu nunca tinha tido, nem mesmo criança, mas que as aparições do feto em minhas noites estavam me apresentando –, me levantei da cama e fui até a sala. Eram onze e quarenta e cinco. Meu pai, que não devia ter ideia do quão paranoico e demente eu me tornava, dormia. Já tinha pensado mais de uma vez em abrir o jogo para ele quanto a tudo que estava ocorrendo, mas nunca senti intimidade. Talvez nunca tenhamos sido próximos de verdade.

Da janela da sala, o quintal brilhava sob as luzes brancas e fosforescentes da rua de trás. Nos meus primeiros dois anos na casa ainda tinha o hábito de brincar de bola ali, até mesmo sozinho, mas desde que passara na faculdade não via mais graça. Lembrei-me da história que meu pai havia me contado, é claro. Foi inexplicável mas irresistível a tentação de, descalço, abrir a porta dos fundos e pisar naquele ambiente. O concreto que passou a arranhar os meus pés era o mesmo de sempre. Nada de novo naquele local, e sinceramente não sei o que poderia ter de diferente naquela noite. As mesmas duas bicicletas largadas – uma minha, outra do meu pai, e só agora me dava conta de que nunca tínhamos pedalado juntos –, as ervas crescendo sem que ninguém as podasse – sempre fomos horríveis em cuidar desses detalhes desde que mamãe morreu de câncer –, o tronco ancestral de bananeira que permanecia ali contra todas as intempéries. Já tinha estado naquele ambiente centenas de vezes, tanto de dia como de noite.

Desisti e olhei para o céu, curioso. Talvez visse ao menos a lua e algumas estrelas, para não perder a viagem. Gosto de astronomia. Assim que achei Marte no céu, no entanto, senti um odor diferente. Querosene. Hum. Lá fora? Não. Vinha de dentro. Meus pelos do braço se arrepiaram inteiramente, pois, ainda olhando para cima, não quis mais descer os olhos. Sabia o que poderia encontrar. Havia sentido a mesma vibração na pele que sentia cada noite, ao rememorar minha visão. Preferi fechar as pálpebras e conviver, por alguns segundos, apenas com o odor. Meu coração já estava disparado e eu me comportava como alguém que no cinema fecha os olhos porque sabe que vai levar um susto. Antes que apenas pudesse dar meia-volta e sair correndo, gritar, acordar meu pai, nem sabia mais o que poderia fazer, ouvi um grito dilacerante, no pé-do-ouvido. Na mesma voz que me abalava diariamente. A da velha. Abri os olhos imediatamente, esperando o pior. O rosto dela estava colado no meu.

Lá ela estava, nua, aquela pele horrível, pendente. Tudo em seu corpo era banha derretida, e ela olhava para mim, mesmerizada, doente, Vamos, é a etapa final do ritual, ela fugiu com ele, nossa filha, a puta fugiu com o homem preto. Façamos a nossa parte, é só o que falta. O ritual nos levará ao próximo estágio da vida. Só resta o toque das chamas, venha, será o nosso último abraço, meu querido, e jogava querosene em si, encharcando a pele pálida e doente, e então passou a jogar em mim. Foi só então que olhei para baixo. Eu agora era um velho.

Meu corpo era algo de que tinha nojo, cheio de perebas, pelos brancos, tudo enrugado, meus peitos caídos, minhas mãos frágeis e incapazes. A velha jogava mais querosene em mim. Eu sentia minha cabeça molhando, meus olhos sem conseguir enxergarem direito pela torrente. Eis que a velha me abraça, e eu só queria fugir, mas eu não era eu, eu era o velho. Meus braços a recebiam contra a minha vontade. Ela apenas sussurra no meu ouvido, com a voz rouca e molhada, É chegada a hora, e finalmente ouço minha própria voz, mais aterrorizante ainda de ouvir saindo da própria garganta que a da velha. Voz profunda e rouca, num cântico que eu jamais ouvira mas que agora na visão recitava como se todo dia o lesse, enquanto a velha acendia lenta e ritualisticamente um fósforo.

Que as chamas venham,

Nossa carne queimai,

Dela a pura alma libertai.

 

Que a cortesã se arrependa

Do desatino que causou,

Pois do destino não se livrou.

 

Que sua prole carregue a marca.

De delírios ela padecerá

Aguardai; a morte abraçará.

Ao fim do último verso, solta a velha o fósforo sobre nossas cabeças, e a noite se torna dia. Tudo brilha. Sinto as chamas consumindo cada membro. O ímpeto de fugir que antes existia foi substituído por dor, não sentia nada que não minha própria pele derretendo, enquanto a velha me abraçava mais e mais forte e a sua pele parecia se misturar à minha. Eu queria fechar meus olhos, mas os do velho tinham permanecido todo o tempo abertos, de forma que eu era obrigado a tudo testemunhar. Até mesmo quando, por entre as chamas, um dos olhos dela cai do rosto. Nós dois despencamos, sinto que não existo mais, apenas o vermelho do fogo, e dor, e escuro.

Acordei com sol no meu rosto e o meu cachorro me lambendo. O quintal era de novo o meu quintal. Sem lua, sem querosene, sem chamas. Meu corpo era o meu, e estava intacto. Abracei meu cachorro e chorei durante meia-hora, às seis da manhã. Apenas eu e ele.

Ao fim, lembrei-me do meu papel nessa tragédia do horror e anotei no caderno amarelo essas palavras que você lê, junto com o cântico do velho. Achei, enquanto escrevia, que pedaços da minha pele ainda caíam, revelando a carne queimada, trazendo-me todo aquele cheiro de volta. No segundo seguinte, eu piscava, e estava lá a mão novamente inteira.

Novamente tomei um banho longo. O sangue da alucinação anterior fora substituído por cinzas, queimaduras, uma sensação de que por mais fria que pudesse ser a água, não seria o suficiente, viveria com rosto, mão, pernas e torsos escoriados, um semihumano, uma aberração. O rosto no espelho, todavia, permanecia o mesmo. Jovem, saudável na medida do possível. Ao deitar, exausto, tentado a apenas permanecer em posição fetal e a tudo abandonar, recebo a visita da voz, a primeira, a gentil, que há algum tempo não me vinha com seus agouros. Essa foi a segunda. Espero que esteja prestando atenção em tudo que vê e ouve. Haverá só mais uma.

Por tudo que já tinha passado, aprendi nas semanas seguintes, da pior maneira, como o meu corpo reagiu aos dias mais negros da minha vida. Minhas unhas passaram a cair, assim como o cabelo. A minha pele tinha a cor e a consistência de farinha. Passava toda noite com os olhos vermelhos observando cada ranhura do teto do quarto, plenamente visíveis à luz acesa. O meu corpo pedia descanso e eu até aceitava repousar na horizontal, mas não tolerava fechar os olhos. Mesmo que não dormisse, a penumbra das pálpebras já era o suficiente para que tudo que vivi em segunda mão através das minhas visões voltasse à tona. Minha vida universitária também, é claro, sofria. Já nem ia mais às aulas fazia tempo.

Meu pai, que estranhava o meu estado há algum tempo e tinha me pedido mais de uma vez que eu fosse ao hospital – ele não tinha como ir comigo –, me encurralou numa noite. Jantamos, eu e ele, em silêncio. Apenas as garfadas e os mastigares de boca aberta – dele – ressoavam na cozinha. Terminei com pressa o meu jantar e já me levantava para levar o prato à pia, quando ele puxou meu braço. Mandou eu me sentar. Olhou sério para mim enquanto calmamente deixava os talheres sobre a mesa. Disse que iria perguntar só uma vez. “Filho. Você tem usado drogas?”. Respondi rindo que não, óbvio. Nunca faria isso. “Certeza? Não vai mentir para mim. Pó, pedra, nada?” “Não.” “Já viu sua cara, filho? É cara de doente. Cara de drogado.” “Pai, vai se foder, sei o que faço ou deixo de fazer, e garanto que não se trata de drogas”. “O que é então?”. Não respondi, pois já tinha largado o prato lá na mesa mesmo e saído para o quarto, batendo a porta.

Qualquer vontade que tivesse tido de me abrir para o meu pai já não existia mais. Poderia falar das aparições para ele, poderia lhe contar que tinha presenciado como os velhos que moraram aqui faz trinta anos fizeram um ritual de sacrifício com o feto da própria filha e que depois ainda vieram a se matar. Poderia lhe dizer sobre como eu tinha certeza de que isso ocorrera de verdade, não sendo meras alucinações minhas. Mas à essa altura, seja lá o que dissesse faria ele apenas pensar que, bom, se tratavam de drogas. E que eu estava louco e viciado e precisava ser internado.

Deixei a luz acesa e passei um bom tempo em pé observando o mundo da janela. Assistindo ao desfilar das pessoas que passavam lentamente na rua trazendo suas sacolas com pão e manteiga para casa, ignorantes de tudo o que acontecia fora de suas banalidades. Sem jamais serem capaz de acreditar que tão próximo delas havia alguém cuja noção de realidade se esvaía. Então deitei na cama. Num ímpeto, alcancei o caderno amarelo e passei a anotar nele tudo que me veio. Todas as possibilidades idiotas a que poderia recorrer para me salvar. Falar com a polícia: ridículo. Recorrer a um exorcista ou a um pai-de-santo: não conhecia nenhum, tampouco saberia o que falar. Quem sabe, fugir, virar indigente, dar ao menos o descanso ao meu pai de não ter mais um filho em casa que ninguém é capaz de ajudar. Cheguei então a procurar a minha mochila de viagem, mas a verdade é que não teria coragem de sair assim pelo mundo. Sou e sempre fui fraco. Por fim, joguei novamente o caderno no criado-mudo e me sentei num canto do quarto, com a cabeça escondida entre as pernas. Sonhei.

Vi uma moça branca de vinte e poucos anos fugindo num Fusca com um homem negro. A mesma do parto. Vi eles morando num sobrado, felizes. Talvez no Rio de Janeiro. Os dois na cama, transando, contentes, perfeitos. Sorrindo enquanto depois escutavam música em vinil. Ele trabalhando no mercado enquanto ela está grávida em casa. Ela tendo o filho, sem que ele estivesse presente, sem quase nenhum amigo para parabenizá-la e trazê-la para casa. Ela preocupada, cuidando do recém-nascido enquanto não tinha notícias do marido. A polícia batendo na porta e lhe contando que o haviam achado. Ele fora degolado na volta do trabalho e tivera seu corpo jogado num córrego. Ela chorando enquanto amamentava o bebê, contando carinhosamente para o filho de seu irmão, que antes mesmo de nascer já tivera o destino igual ao pai. Vi anos se passarem à minha volta enquanto ela cuidava do filho por conta própria. Ela passeando de mãos dadas com o garoto, já um pouquinho maior, mas ainda de fralda. Um colega de trabalho, gentil e observador, se aproximando dela. Numa noite, o filho dormindo na casa de um amigo de escola, vi seu colega a recebendo em seus braços. Reconheço-o agora. Ele é meu pai, e nunca tinha me contado que não era o meu pai biológico, nossas peles e traços sendo tão parecidos. Não sei o que pensar e não tenho tempo agora. Já me reconheço no que vejo. Vejo momentos que já lembro de ter vivido. Somos nós três, eu com seis, oito, dez, quinze anos. Vejo agora ela doente de câncer. Ele ao seu lado chorando e prometendo que ia cuidar de mim como fosse dele.

Enquanto vejo a mim mesmo no quarto do hospital ao lado dela, sem cabelos, percebo sons que não fazem parte da imagem. Sons de passo, sons de madeira. Cada vez mais me distraio do que me é apresentado. Nas minhas visões já estamos na casa onde moro. Vejo meu pai e eu tomando café-da-manhã juntos, um pouco calados, estranhando a ausência de uma terceira figura. Tenho mais e mais dificuldades de me concentrar – parece que estou acompanhado de algo que me faz mal. Percebo então que consigo agora fazer o que quero, como num sonho lúcido. Na minha casa em que sonho – tão parecida, tão igual à casa de verdade onde vivo –, é noite, e está tudo vazio. Estou na sala, sigo para o quarto. Vejo a mim mesmo sentado e uma figura à minha frente. Ouço sua voz. Não a reconheço nem a entendo. Ela fala no ouvido do meu eu sentado. Ela me castiga e me suga. Entendo finalmente que é esse o ser que tem me sugado, a voz que tem me impedido de viver, faz meses. Em minha mão direita vejo aparecer uma faca. Aproximo-me da figura escura e a esfaqueio por trás, ouvindo seu urrar. Termina o sonho. Volto à realidade. Abro então então os olhos.

À minha frente vejo meu pai. Estou abaixado, ele está em pé, com lágrimas nos olhos. O sangue escorre de seu abdômen, do rasgo imenso que fiz de lado a lado. Ele cai no chão, já desmaiado. Enquanto eu sonhava, e achava que me salvava, matei-o.

Ouço as vozes do velho e da velha, meus avós maternos que nunca havia conhecido em vida, e de quem agora entendo que minha mãe nunca falava, cantando juntos nos meus ouvidos:

Tudo que era esperado foi feito,

Seu idílio atravessado por um parto.

Unindo todos que do sangue compartilham,

Nadamos agora no mesmo lago.

Grito até que eles parem, até que o mundo pare. Não sei se suportarei. Grito até que minha garganta doa, caindo no chão. Quando fico sem ar, e não tenho mais como abafar o que ouço, noto que não há mais vozes. Apenas meu cachorro latindo lá fora como nunca o vi latir.

Com as mãos ensaguentadas, busco o caderno de capa amarela e pela última vez anoto essas palavras, borrando as páginas e espremendo a minha feia letra para caber tudo nas últimas páginas. Filho de uma maldição, perdi pai e mãe para o destino e com meus próprios dedos dei cabo do homem que cuidou de mim como um próprio, um pai cujo erro foi não ter me abandonado. Entendo agora que toda a minha vida foi seguir um enredo premeditado. Olho para o céu.

Espero que, após tudo isso, não tenham tardado a entrar em casa e resgatado meu cachorro. Também torço para que não ignorem o caderno quando entrarem no meu quarto. Pois, após ter preenchido todas as páginas, essa frase sendo a última de todas, busquei a faca no chão e me matei.

[conto originalmente publicado em três partes na página Arquivos de Erebus: https://www.facebook.com/arquivosdeerebus/posts/307162983064384]

O Jogo

Meu pai nunca gostou da ideia de ter uma arma em casa. O pai de Beto, meu amigo, não pensava assim, no entanto. E Beto sabia. O pai não a mostrava para ele, mas Beto entrevia, pela fresta da porta, ele polindo a arma, em algumas noites de sábado.

Tínhamos quinze anos, com diferença de poucos meses. Em casa, moravam só Beto e o pai. Era filho único, e a mãe falecera doze anos antes. Fora baleada por assaltantes que invadiram a casa deles.

Era uma noite de sábado. Estávamos na casa dele, o seu pai tinha saído. Jogávamos videogame. Chovia, e eis que a energia caiu. Beto procurou velas na cozinha, não achou. Comentou então sobre achar que o pai, por alguma razão idiota, podia ter algumas no quarto, junto a uma bíblia. Segui-o, cada um com celulares à postos. Claro que eles nos ajudavam bastante, eram inclusive melhores que vela para iluminar, mas não durariam a noite toda, em especial se não sabíamos quando a energia voltaria para carregá-los.

No quarto, ele mexia num criado-mudo enquanto eu fuçava o outro. Ao mesmo tempo em que eu gritei “Achei!” com as velas em mão, sorrindo para ele, ele me olhava sério. Tinha a .38 do pai em mãos.

Pedi para ele guardar a arma. Tinha aprendido com o meu pai a não brincar com isso. Ele falou “É, sei, é perigoso, mas só estou olhando. Nem deve estar armada. Gosto de como ela brilha com a luz do celular”. Ele estava fingindo que a apontava para o espelho, imitando uma cena de filme, quando o pai dele apareceu à porta. “Então vocês gostam de brincar de arma?”, ele nos perguntou. De terno, como ele estava, em frente à janela pela qual se via a chuva na cidade, e mais nada, ele parecia um senhor feudal, dono de suas terras e seus vassalos.

Paralisados, eu apenas segurava a vela recém-acesa na mão – tinha levado já os fósforos para o quarto – enquanto ele continuava apontado para o espelho, com os olhos fixados nos do pai, que eram gélidos. O pai se dirigiu lentamente até Beto e em um movimento firme tomou a arma de suas mãos. “Vamos brincar, já que vocês gostam disso”.

Meu desejo era de fugir, até talvez o fizesse se Beto também saísse correndo, mas ele apenas conseguiu descer as escadas, acuado. Segui-o, com o pai dele atrás de nós dois, arma em punho. Cada passo na escada de madeira ressoava por toda a casa. Na sala, ele nos mandou desligar os celulares, e disse para eu pôr a vela no centro da mesa redonda de vidro. Era a única fonte de luz. Ordenou também que nós dois nos sentássemos, depois de fecharmos cada uma das cortinas. Obedecemos, congelados.

Sem pressa, como em todos os movimentos dele, ele por fim sentou-se também, defronte dos dois. Deixou o revólver na mesa, próximo a ele. Com a mão direita revirou o bolso enquanto com a esquerda coçava o cavanhaque. Colocou duas balas na mesa, o vidro estalando com o choque de cada uma, que pareciam pesar quilos naquela noite. Uma bala aparentemente nova, a outra usada. Ele pôs a nova na arma, tomando para si cada segundo como senhor do tempo que era, sem urgência. Girou o tambor, olhando alternadamente para os olhos de cada um. “Já que gostam de brincar, que tal um joguinho de roleta russa?”.

Queria me levantar, dar um soco nele, imobilizá-lo. Ele era maior que cada um de nós, mas não maior que os dois juntos. Beto, no entanto, nada fazia nem parecia que iria fazer. Apenas olhava para baixo, começando a lacrimejar. A voz do pai dele nos dominava: “Sendo o mais velho, acho justo ser o primeiro. Não acham?”. Apontou a arma para a própria têmpora. Desejei primeiro que o disparar do gatilho fosse em vão, que houvesse apenas o barulho do martelo da arma sendo estalado. Logo em seguida, desejei que a bala saísse, sim. Odeio a mim mesmo e me castigo e penso nisso todo dia antes de dormir. Mas foi a verdade.

Só ouvimos o clique, nada mais. Quase deu para ouvir Beto suspirar, mas não tenha certeza se ele suspirou mesmo. Talvez soluçasse. As suas lágrimas desciam sem barulho.

O silêncio da sala, acompanhado pela fonte ancestral de luz que estava no centro geométrico do triângulo formado por nós três, nos fazia sentir num espaço eterno, onde mortes eram decididas assim, ao acaso, ao sabor do vento. O pai de Beto, em seguida, olhou para cada um. “Bom, agora é a vez de algum de vocês. Qual é o mais velho, para manter a regra?”. Nos entreolhamos. Eu sabia ser o mais velho. No entanto, nada disse. Beto também estava mudo, sabendo da verdade e sabendo que eu sabia da verdade. Nos olhamos, eu e ele, durante vários segundos, questionando-nos silenciosamente qual de nós seria o primeiro a abrir a boca. Estava prestes a admitir que era o próximo quando o pai de Beto bateu a mão na mesa, impaciente. “Caralho, se nenhum sabe, portanto que seja meu filho. Vamos passar de pai para filho essa brincadeira. Seguir o caminho do sangue. Justo, não acham? Filho cujo sangue é o meu. Não?” Aquele foi o único momento da noite em que houve algo no olhar opaco de Beto. Houve ódio, direcionado a mim e ao pai. Ele sabia que eu tinha permanecido calado, que deveria ser eu, mas eu fugi, fui fraco. O pai dele segurou a arma com o cano, gesticulando para Beto que segurasse a arma. Ele não levantava o braço, entretanto. O pai deu-lhe um tapa no rosto. “O quê? Não vai brincar? Está com medo?…bom. É a sua vez, pelo nosso acordo. No entanto, permanece assim. Imóvel. Patético. De você não esperava diferente. Sabe por quê?”. Beto olhou para ele como um animal olha para o leão prestes a devorar as jugulares de sua família: odioso em seu pavor, pavoroso em seu ódio. “Se você não tem coragem de puxar o gatilho, eu o faço por você.” Em um movimento de mão, o pai de Beto girou a arma. No segundo seguinte ele já a segurava corretamente, cano apontado primeiro para a têmpora e então frontalmente para a testa do filho. “De um filho que não é meu, nunca esperei atitude ou coragem. Não veio antes e não virá agora.” Ele puxou o gatilho.

Dei um salto com o estrondo e o clarão. Abaixei o rosto com os olhos fechados e estremeci quando a cabeça ensanguentada de Beto se chocou secamente com a mesa.

Despenquei no chão, rastejando debilmente para baixo da mesa. Fui capaz apenas de ouvir o som da arma sendo largada na mesa e dois braços fortes me carregando para fora, pelas pernas. Sua voz soava grave e profética. “Sabe qual era aquela outra bala? A usada? Você sabe, não, jovem? Foi a bala que matou a cadela da mãe dele, doze anos atrás, no mesmo jogo. Da mesma maneira. Estava escrito, jovem. Pus a arma na minha cabeça antes dela. Não veio a bala. Isso é predestinado, não sabe? Aquela bala tinha sido feita só para matá-la, aquela vadia. E agora, finalmente, doze anos depois de ouvir a verdade dos seus lábios, doze anos olhando para o filho ilegítimo toda noite e em cada uma delas querendo matá-lo. Outra bala igualmente divina realizou o seu propósito. Não é azar dos que se foram, meu jovem. É a mão de Deus guiando as nossas.”

Me jogou na calçada encharcada. Eu chorava, sentindo o sangue de Beto espirrado em mim, minha roupa manchada ainda pela chuva que tudo lavava. Minha última visão daquela casa foi o pai de Beto fazendo o Pai-Nosso enquanto fechava a porta, olhando para os céus e sorrindo.

conto originalmente publicado na página Arquivos de Erebus: https://www.facebook.com/arquivosdeerebus/posts/301597296954286

O Fã

Já sonhou em se encontrar com o seu escritor favorito? Eu já. Era o escritor de suspense que mais amava, o responsável por minhas noites mal dormidas, consumido por suas histórias. Havia devorado todos seus romances e contos. Cada inovação sua era seguida de mil plágios de autores menores. Cada enredo original era prontamente copiado em mil rascunhos mal feitos – e ainda assim, publicados! – onde suas cenas e soluções tão elegantes e macabras eram distorcidas em clichês, deus, quantos clichês. Há décadas que era o nosso rei, e apesar disso, ou, quem sabe, justamente por isso, era recluso como um leproso medieval. Nunca respondia emails de fãs. Nunca aparecia para autógrafos e feiras, mesmo as várias feitas em sua homenagem. Tudo que tínhamos era a mísera foto em seu livro; era o que nos permitia ao menos conhecer seu rosto – um rosto tão banal e ainda assim único para nós, seus devotos – e saber como ao longo das obras – um best-seller atrás do outro – seu cabelo rareava e seus olhos se demonstravam mais e mais opacos.

Qual não foi a nossa surpresa quando os cem membros mais antigos do fã-clube oficial, e apenas eles, receberam em seus emails um convite para o lançamento de sua mais inédita obra, com a presença de ninguém menos que, sim, o autor, em carne, osso e imaginação doente. Foi o suficiente para, nas três semanas que separaram o recebimento do convite e o evento em si, meu coração bater febril em cada noite, justamente quando mais queria apenas dormir para que o tempo logo passasse.

Na noite do lançamento, nos reunimos num teatro. Ninguém havia na recepção; apenas havíamos entrado e preenchido os lugares. O palco, além da cortina vermelha fechada, continha somente um par de velas. O convite anunciava o evento para as vinte e três horas; qualquer outra informação nos permanecia oculta. Não sabíamos o nome do livro, e se teríamos que pagar por ele ou pelo evento. Nos fora exigida somente a presença.

Às vinte e três em ponto, as luzes artificiais se apagaram. Naquele momento, a débil iluminação das velas mal era suficiente para enxergar a cor da cortina. Nossos corações coletivamente batiam numa sinfonia desordenada. Sem aviso ou preparação, uma voz começa a nos falar do sistema de som:

“Bem-vindos, meus queridos leitores. Meus amigos, meus irmãos. Boa noite.”

Todos se entreolhavam, buscando ser gentis, inclusive respondendo o boa noite, até mesmo tentando descobrir se o autor – conhecíamos seu rosto, afinal – não já se escondia no meio de nós. Seria um truque perfeitamente razoável. Não parecia, no entanto, ser o caso.

“Imagino que estejam ansiosos para o lançamento que lhes aguarda hoje. Bom, antes de tudo, agradeço pelas décadas de leituras fiéis. A vocês tudo devo. Acreditem em mim. Tudo.

“Talvez os mais atenciosos tenham percebido, todavia, como minha saúde se deteriorou ao longo dos anos. Esse fato não pôde escapar às imagens, devem saber. Jamais quis retocar minhas fotografias…assim, não seria difícil perceber como me tornei mais e mais emaciado. Cadavérico, até, diria. Bom. Apropriado para um autor do meu gênero, não?

“A verdade é que o processo de criar tantas histórias me consumiu. Alimentar vocês, meus donos. SIM, vocês são meus donos, acreditem, não passo de um escravo cuja obrigação moral é parir, PARIR, enredo atrás de enredo para vos satisfazer. É tudo que esperam de mim. Como tive que aguentar ligações e mensagens e cartas pedindo mais histórias, solicitando continuações, exigindo finais! Tanta expectativa, justamente de quem apenas deveria me deixar em paz, agradecer e seguir a vida, somente isso. Tudo que esperei de vocês foi respeito e silêncio. Nunca houve, é claro. Antes que duvidem…li cada pedido que foi me enviado, seja por qual meio tenha sido. Não queria, nem mesmo devia, mas não resisti…”

À essa altura, algumas reclamações em voz alta já partiam da plateia; alguns se levantavam, enquanto outros, elevando a voz, denunciavam ser tudo uma farsa. Os mais frágeis choravam, tristes de terem ofendido seu ídolo.

“Bom, depois de hoje não haverá mais cobrança. Presentar-lhes-ei com a minha obra-prima. E assim, finalmente, terei paz. Esse presente é a única forma como posso lhes agradecer, depois de tantos anos de relação íntima.

“Ah, sim. Um último adendo necessário. Estou gravando essa mensagem às oito da noite. Quando ela terminar de ser tocada nos alto-falantes, será pouco mais de onze, creio…espero que gostem da obra que agora, sem mais espera, lhes dou.”

As cortinas se abriram. Nada vimos, no breu. Podem então ter se passado trinta ou trezentos segundos de escuridão. Minha ansiedade estava a tal ponto que eu não media mais a passagem do tempo. Subitamente, todos os refletores iluminaram o mesmo ponto no palco. De início nada consegui enxergar, ofuscado.

Aos poucos, minha visão se acostumou.

Numa poltrona preta, isolada, estava sentado o nosso escritor. Inconfundível. Sua boca estava aberta. Quando finalmente consegui abrir os olhos por completo, entendi o que nos aguardava. No corpo do autor, em toda a sua glória solitária no palco, estavam lápis enfiados em cada um de seus olhos e uma caneta tinteiro atravessava de lado a lado a garganta. A tinta se misturava ao seu sangue coagulado no peito. Todos os seus dentes haviam sido removidos.

Abafada por gritos e surtos da plateia, emanava dos altos falantes uma gargalhada.

conto originalmente publicado na página Arquivos de Erebus: https://www.facebook.com/arquivosdeerebus/posts/309109252869757