As Vozes

Nunca tinha ouvido vozes dentro da cabeça, até o dia em que uma me pediu para escrever essa história.

A voz me falava que coisas dementes tinham acontecido na nossa casa, onde eu morava com meu pai e meu cachorro. Disse-me que eu seria visitado por várias pessoas, todas mortas há tempos, que viriam para me mostrar através de visões o que sabiam. Avisou-me também que eu não precisava ter medo. A mim caberia somente registrar os relatos num caderno de capa amarela, para que os horrores passados na casa não permanecessem desconhecidos aos vivos. Isso me foi dito pela voz gentil, a primeira de todas que viriam. Tremi, pensei na possibilidade de estar enlouquecendo, mas no íntimo sabia que não. Sempre pensei que pudesse existir o além, apenas pensava que não seria por mim que ele buscaria fazer contato. Assumo ser idiota o bastante para me empolgar com o desconhecido e perigoso, mas não burro o suficiente para ignorar uma chance única quando ela aparece. Na dúvida, comprei um caderno de capa amarela – sim, a capa precisava ser amarela, a voz me dissera –, e deixei-o sobre o criado-mudo. Na primeira página, à lápis, anotei essas linhas que você lê.

Segui minha vida, fazia faculdade de administração durante o dia. Algumas semanas haviam se passado desde o primeiro contato e não houvera qualquer voz ou aparição no escuro, tampouco cadeira balançando, luz piscando, nada. Provavelmente eu tinha tido um surto, meu subconsciente devia estar querendo me dizer algo, quem sabe um complexo de édipo reprimido, sempre é o tal do édipo, dizem.

Uma noite eu estava sozinho na cozinha, à noite, jantando um macarrão ao molho sugo. Meu pai estava fora de casa. Situação perfeitamente comum, sempre foi tranquilo eu ficar sozinho. Costumava pôr músicas para disfarçar um pouco a solidão, mas nessa era apenas eu, o prato e o silêncio, com o nosso cachorro preso do lado de fora, nem latir ele latia. Ouvi então, num tom calmo, a voz de uma velha. Sim, vai ter que ser aqui mesmo, minha filha, abre as pernas, a bacia está pronta. Abre as pernas que já estou com a agulha limpa. Olhei em volta, obviamente não havia qualquer senhora, muito menos filha. No medo cheguei a gritar, perguntar quem era que estava ali, o que queria, mas sem resposta. Ao menos resposta para mim. Pois a voz continuou: não, não adianta, precisa ser agora, você sabe, o combinado era esse, o próximo pode ser seu, ele crescerá e se tornará um garoto lindo, um garoto lindo e branco, lindo e branco, mas esse é nosso, sete meses, era o combinado, é o melhor para todos. Sempre fui imaginativo, algo que achei que pudesse ser bom, quem sabe até proveitoso para a futura carreira profissional, mas naquele momento, meu deus, odiei, queria apenas ser opaco de imaginação, nada mais, e não houve jeito, pois meus pés já estavam molhados, como se eu estivesse dentro da bacia, e a voz da velha soava à minha orelha, como se ela estivesse apoiada nos meus ombros e falasse a centímetros, Sim, bem assim, a bacia já está com as ervas necessárias, alecrim, arruda e anis, é como está no livro, seu filho é sujo e precisamos limpá-lo, eu e seu pai sabemos o que é melhor para você, não adianta voltar atrás, filha, quem mandou ter um filho com aquele homem, aquele preto, aquele preto imundo, agora esse é nosso, você ficará feliz, nós ficaremos felizes. À minha frente estava lá ela, a filha, uma jovem, mais nova ainda que eu, de pernas abertas, e quem abria suas pernas era eu, eu era a velha, eu estava vendo o que ela viu sabe-se-lá em que década, e minhas mãos, digo, as da velha, que agora eram minhas, elas abriam a vagina da filha, e lá punham uma agulha enorme, sim, eu queria gritar, mas não conseguia, pois de mim só saía a voz da velha, dizendo abre mais, abre que não quero te machucar, só a criança. Eu queria parar de pôr aquela agulha mais e mais para dentro, mas não podia, pois não as controlava. O sangue passou a jorrar da filha, que gritava, e a velha, digo, eu, eu apenas pedia, quase cantava, como numa canção de ninar Dorme, dorme, meu bem, que a noite já vai passar, em minhas mãos saía o natimorto, o feto negro, ele caía na bacia, um ser desforme, que talvez não chorasse mas para mim chorava. Agora é a hora do ritual, que o sangue do filho, sendo o mesmo sangue do pai, derrame aqui, que do seu pai derramará. A filha gritava, ela queria fazer algo, mas estava prostrada, incapaz. Então as mãos da velha agarravam uma navalha e cortavam o pescoço do feto, o sangue jorrava, tornando a bacia um mar vermelho. Gritei e fechei os olhos. Quando os abri, estava na cozinha da minha casa, estava deitado de lado no chão. Não havia mais feto nem filha nem velha. Corri para o meu quarto, registrei tudo que pude no caderno amarelo, desse modo, desenfreado, não tinha como pensar nem como agir de forma mais útil. Apenas fechei todas as janelas de casa, tranquei as portas e dormi, ou tentei dormir.

Na manhã seguinte, mais calmo, acordei com meu pai perguntando para mim porque eu tinha espalhado o molho do macarrão em todo o chão da cozinha. Me xingou dizendo que eu tinha feito uma bagunça do caralho. Eu me limitei a responder que tinha sido o cachorro e saí antes que ele pudesse fazer mais perguntas ou imaginar se o cachorro poderia mesmo subir na mesa. Não tive capacidade de ir à aula nesse dia. Depois que todos já tinham saído passei duas horas no banho, tentando limpar o sangue do corpo. Não havia sangue para quem me visse de fora, mas por dentro para mim estava sujo, absolutamente sujo pelo sangue daquele feto. Ao final, enquanto me secava, olhando no espelho e querendo acreditar que, sim, a voz que ouvia saindo de mim mesmo era de novo a minha, as mãos que manejavam a toalha eram as minhas, ouço novamente a primeira voz, a que iniciou tudo. Essa foi só a primeira. Viva para saber e escreva.

Enquanto não sabia o que esperar dali para frente, minha única opção era a de seguir adiante. Descobri que odiava o que estava acontecendo comigo, e que provavelmente não suportaria outra visão. Tinha escolha? Provavelmente não.

Quem então era a velha da minha alucinação? Poderia não ter mais me indagado, poderia até ter fingido que nada daquilo tinha acontecido, mas os pesadelos não contribuíam. Claro, tive pesadelos. Tinha escolha? Provavelmente não.

Neles eu repetia e vivia novamente a cena, como a vi, como a vivi naquela noite na cozinha. De novo era a velha. De novo tinha o natimorto em mãos e derramava seu sangue. De novo acordava gritando sozinho na cama, que estava seca, porém eu mesmo me sentia encharcado. Não que tivesse me mijado. Eram a água da bacia e o sangue fetal que não abandonavam a minha pele. Em cada uma dessas noites, eu alcançava o meu caderno de capa amarela, e escrevia e escrevia. Punha em papel cada detalhe, palavra, tom de pele, derramamento de sangue que presenciara. Mas a verdade é não tinha nada de novo a acrescentar. Era sempre a mesma visão.

Num café-da-manhã, não resisti e perguntei a meu pai quem tinha morado na nossa casa antes da gente. Estávamos lá fazia apenas cinco anos, sendo que antes estava abandonada, até onde me constava. Ele respondeu que sabia apenas de uma família, que tinha morado lá nos anos 80. Pai, mãe e filha. O pai e a mãe eram bem mais velhos que a filha, poderiam ser até seus avós, todos tinham vontade de questioná-los quanto a isso, mas eles nunca permitiram haver intimidade com os vizinhos. Essa filha então fugiu de casa com trinta e poucos, sendo que jamais se soube para onde ela foi. O casal de idosos por sua vez morreu pouco tempo depois num acidente horrível. Ambos foram encontrados carbonizados no quintal, ali mesmo onde eles moravam. Onde eu moro. Perguntei, depois de minha espinha ter congelado, porque caralhos ele nunca tinha me contado essa história. Ele deu de ombros e respondeu, olhando para os lados, que achava tudo aquilo meio com cara de inventado. Perguntei quanto ao que aconteceu com a casa, se alguém tinha tido a coragem de morar aqui logo depois. Ele se resignou a fechar os olhos e se levantar para sair. Quando já estava na porta respondeu que não sabia de nada, mas que achava difícil o imóvel ter permanecido muito tempo vazio. As necessidades de habitação superavam qualquer superstição. Também disse que iria perguntar para os vizinhos mais velhos se sabiam de algo além disso.

O incidente inicial da visão na cozinha aconteceu em abril. Maio se passou sem maiores catástrofes, ao menos além dos pesadelos que àquela altura já haviam se tornado próximos de diários. Numa noite em junho, com medo de fechar os olhos no escuro do quarto – um temor que eu nunca tinha tido, nem mesmo criança, mas que as aparições do feto em minhas noites estavam me apresentando –, me levantei da cama e fui até a sala. Eram onze e quarenta e cinco. Meu pai, que não devia ter ideia do quão paranoico e demente eu me tornava, dormia. Já tinha pensado mais de uma vez em abrir o jogo para ele quanto a tudo que estava ocorrendo, mas nunca senti intimidade. Talvez nunca tenhamos sido próximos de verdade.

Da janela da sala, o quintal brilhava sob as luzes brancas e fosforescentes da rua de trás. Nos meus primeiros dois anos na casa ainda tinha o hábito de brincar de bola ali, até mesmo sozinho, mas desde que passara na faculdade não via mais graça. Lembrei-me da história que meu pai havia me contado, é claro. Foi inexplicável mas irresistível a tentação de, descalço, abrir a porta dos fundos e pisar naquele ambiente. O concreto que passou a arranhar os meus pés era o mesmo de sempre. Nada de novo naquele local, e sinceramente não sei o que poderia ter de diferente naquela noite. As mesmas duas bicicletas largadas – uma minha, outra do meu pai, e só agora me dava conta de que nunca tínhamos pedalado juntos –, as ervas crescendo sem que ninguém as podasse – sempre fomos horríveis em cuidar desses detalhes desde que mamãe morreu de câncer –, o tronco ancestral de bananeira que permanecia ali contra todas as intempéries. Já tinha estado naquele ambiente centenas de vezes, tanto de dia como de noite.

Desisti e olhei para o céu, curioso. Talvez visse ao menos a lua e algumas estrelas, para não perder a viagem. Gosto de astronomia. Assim que achei Marte no céu, no entanto, senti um odor diferente. Querosene. Hum. Lá fora? Não. Vinha de dentro. Meus pelos do braço se arrepiaram inteiramente, pois, ainda olhando para cima, não quis mais descer os olhos. Sabia o que poderia encontrar. Havia sentido a mesma vibração na pele que sentia cada noite, ao rememorar minha visão. Preferi fechar as pálpebras e conviver, por alguns segundos, apenas com o odor. Meu coração já estava disparado e eu me comportava como alguém que no cinema fecha os olhos porque sabe que vai levar um susto. Antes que apenas pudesse dar meia-volta e sair correndo, gritar, acordar meu pai, nem sabia mais o que poderia fazer, ouvi um grito dilacerante, no pé-do-ouvido. Na mesma voz que me abalava diariamente. A da velha. Abri os olhos imediatamente, esperando o pior. O rosto dela estava colado no meu.

Lá ela estava, nua, aquela pele horrível, pendente. Tudo em seu corpo era banha derretida, e ela olhava para mim, mesmerizada, doente, Vamos, é a etapa final do ritual, ela fugiu com ele, nossa filha, a puta fugiu com o homem preto. Façamos a nossa parte, é só o que falta. O ritual nos levará ao próximo estágio da vida. Só resta o toque das chamas, venha, será o nosso último abraço, meu querido, e jogava querosene em si, encharcando a pele pálida e doente, e então passou a jogar em mim. Foi só então que olhei para baixo. Eu agora era um velho.

Meu corpo era algo de que tinha nojo, cheio de perebas, pelos brancos, tudo enrugado, meus peitos caídos, minhas mãos frágeis e incapazes. A velha jogava mais querosene em mim. Eu sentia minha cabeça molhando, meus olhos sem conseguir enxergarem direito pela torrente. Eis que a velha me abraça, e eu só queria fugir, mas eu não era eu, eu era o velho. Meus braços a recebiam contra a minha vontade. Ela apenas sussurra no meu ouvido, com a voz rouca e molhada, É chegada a hora, e finalmente ouço minha própria voz, mais aterrorizante ainda de ouvir saindo da própria garganta que a da velha. Voz profunda e rouca, num cântico que eu jamais ouvira mas que agora na visão recitava como se todo dia o lesse, enquanto a velha acendia lenta e ritualisticamente um fósforo.

Que as chamas venham,

Nossa carne queimai,

Dela a pura alma libertai.

 

Que a cortesã se arrependa

Do desatino que causou,

Pois do destino não se livrou.

 

Que sua prole carregue a marca.

De delírios ela padecerá

Aguardai; a morte abraçará.

Ao fim do último verso, solta a velha o fósforo sobre nossas cabeças, e a noite se torna dia. Tudo brilha. Sinto as chamas consumindo cada membro. O ímpeto de fugir que antes existia foi substituído por dor, não sentia nada que não minha própria pele derretendo, enquanto a velha me abraçava mais e mais forte e a sua pele parecia se misturar à minha. Eu queria fechar meus olhos, mas os do velho tinham permanecido todo o tempo abertos, de forma que eu era obrigado a tudo testemunhar. Até mesmo quando, por entre as chamas, um dos olhos dela cai do rosto. Nós dois despencamos, sinto que não existo mais, apenas o vermelho do fogo, e dor, e escuro.

Acordei com sol no meu rosto e o meu cachorro me lambendo. O quintal era de novo o meu quintal. Sem lua, sem querosene, sem chamas. Meu corpo era o meu, e estava intacto. Abracei meu cachorro e chorei durante meia-hora, às seis da manhã. Apenas eu e ele.

Ao fim, lembrei-me do meu papel nessa tragédia do horror e anotei no caderno amarelo essas palavras que você lê, junto com o cântico do velho. Achei, enquanto escrevia, que pedaços da minha pele ainda caíam, revelando a carne queimada, trazendo-me todo aquele cheiro de volta. No segundo seguinte, eu piscava, e estava lá a mão novamente inteira.

Novamente tomei um banho longo. O sangue da alucinação anterior fora substituído por cinzas, queimaduras, uma sensação de que por mais fria que pudesse ser a água, não seria o suficiente, viveria com rosto, mão, pernas e torsos escoriados, um semihumano, uma aberração. O rosto no espelho, todavia, permanecia o mesmo. Jovem, saudável na medida do possível. Ao deitar, exausto, tentado a apenas permanecer em posição fetal e a tudo abandonar, recebo a visita da voz, a primeira, a gentil, que há algum tempo não me vinha com seus agouros. Essa foi a segunda. Espero que esteja prestando atenção em tudo que vê e ouve. Haverá só mais uma.

Por tudo que já tinha passado, aprendi nas semanas seguintes, da pior maneira, como o meu corpo reagiu aos dias mais negros da minha vida. Minhas unhas passaram a cair, assim como o cabelo. A minha pele tinha a cor e a consistência de farinha. Passava toda noite com os olhos vermelhos observando cada ranhura do teto do quarto, plenamente visíveis à luz acesa. O meu corpo pedia descanso e eu até aceitava repousar na horizontal, mas não tolerava fechar os olhos. Mesmo que não dormisse, a penumbra das pálpebras já era o suficiente para que tudo que vivi em segunda mão através das minhas visões voltasse à tona. Minha vida universitária também, é claro, sofria. Já nem ia mais às aulas fazia tempo.

Meu pai, que estranhava o meu estado há algum tempo e tinha me pedido mais de uma vez que eu fosse ao hospital – ele não tinha como ir comigo –, me encurralou numa noite. Jantamos, eu e ele, em silêncio. Apenas as garfadas e os mastigares de boca aberta – dele – ressoavam na cozinha. Terminei com pressa o meu jantar e já me levantava para levar o prato à pia, quando ele puxou meu braço. Mandou eu me sentar. Olhou sério para mim enquanto calmamente deixava os talheres sobre a mesa. Disse que iria perguntar só uma vez. “Filho. Você tem usado drogas?”. Respondi rindo que não, óbvio. Nunca faria isso. “Certeza? Não vai mentir para mim. Pó, pedra, nada?” “Não.” “Já viu sua cara, filho? É cara de doente. Cara de drogado.” “Pai, vai se foder, sei o que faço ou deixo de fazer, e garanto que não se trata de drogas”. “O que é então?”. Não respondi, pois já tinha largado o prato lá na mesa mesmo e saído para o quarto, batendo a porta.

Qualquer vontade que tivesse tido de me abrir para o meu pai já não existia mais. Poderia falar das aparições para ele, poderia lhe contar que tinha presenciado como os velhos que moraram aqui faz trinta anos fizeram um ritual de sacrifício com o feto da própria filha e que depois ainda vieram a se matar. Poderia lhe dizer sobre como eu tinha certeza de que isso ocorrera de verdade, não sendo meras alucinações minhas. Mas à essa altura, seja lá o que dissesse faria ele apenas pensar que, bom, se tratavam de drogas. E que eu estava louco e viciado e precisava ser internado.

Deixei a luz acesa e passei um bom tempo em pé observando o mundo da janela. Assistindo ao desfilar das pessoas que passavam lentamente na rua trazendo suas sacolas com pão e manteiga para casa, ignorantes de tudo o que acontecia fora de suas banalidades. Sem jamais serem capaz de acreditar que tão próximo delas havia alguém cuja noção de realidade se esvaía. Então deitei na cama. Num ímpeto, alcancei o caderno amarelo e passei a anotar nele tudo que me veio. Todas as possibilidades idiotas a que poderia recorrer para me salvar. Falar com a polícia: ridículo. Recorrer a um exorcista ou a um pai-de-santo: não conhecia nenhum, tampouco saberia o que falar. Quem sabe, fugir, virar indigente, dar ao menos o descanso ao meu pai de não ter mais um filho em casa que ninguém é capaz de ajudar. Cheguei então a procurar a minha mochila de viagem, mas a verdade é que não teria coragem de sair assim pelo mundo. Sou e sempre fui fraco. Por fim, joguei novamente o caderno no criado-mudo e me sentei num canto do quarto, com a cabeça escondida entre as pernas. Sonhei.

Vi uma moça branca de vinte e poucos anos fugindo num Fusca com um homem negro. A mesma do parto. Vi eles morando num sobrado, felizes. Talvez no Rio de Janeiro. Os dois na cama, transando, contentes, perfeitos. Sorrindo enquanto depois escutavam música em vinil. Ele trabalhando no mercado enquanto ela está grávida em casa. Ela tendo o filho, sem que ele estivesse presente, sem quase nenhum amigo para parabenizá-la e trazê-la para casa. Ela preocupada, cuidando do recém-nascido enquanto não tinha notícias do marido. A polícia batendo na porta e lhe contando que o haviam achado. Ele fora degolado na volta do trabalho e tivera seu corpo jogado num córrego. Ela chorando enquanto amamentava o bebê, contando carinhosamente para o filho de seu irmão, que antes mesmo de nascer já tivera o destino igual ao pai. Vi anos se passarem à minha volta enquanto ela cuidava do filho por conta própria. Ela passeando de mãos dadas com o garoto, já um pouquinho maior, mas ainda de fralda. Um colega de trabalho, gentil e observador, se aproximando dela. Numa noite, o filho dormindo na casa de um amigo de escola, vi seu colega a recebendo em seus braços. Reconheço-o agora. Ele é meu pai, e nunca tinha me contado que não era o meu pai biológico, nossas peles e traços sendo tão parecidos. Não sei o que pensar e não tenho tempo agora. Já me reconheço no que vejo. Vejo momentos que já lembro de ter vivido. Somos nós três, eu com seis, oito, dez, quinze anos. Vejo agora ela doente de câncer. Ele ao seu lado chorando e prometendo que ia cuidar de mim como fosse dele.

Enquanto vejo a mim mesmo no quarto do hospital ao lado dela, sem cabelos, percebo sons que não fazem parte da imagem. Sons de passo, sons de madeira. Cada vez mais me distraio do que me é apresentado. Nas minhas visões já estamos na casa onde moro. Vejo meu pai e eu tomando café-da-manhã juntos, um pouco calados, estranhando a ausência de uma terceira figura. Tenho mais e mais dificuldades de me concentrar – parece que estou acompanhado de algo que me faz mal. Percebo então que consigo agora fazer o que quero, como num sonho lúcido. Na minha casa em que sonho – tão parecida, tão igual à casa de verdade onde vivo –, é noite, e está tudo vazio. Estou na sala, sigo para o quarto. Vejo a mim mesmo sentado e uma figura à minha frente. Ouço sua voz. Não a reconheço nem a entendo. Ela fala no ouvido do meu eu sentado. Ela me castiga e me suga. Entendo finalmente que é esse o ser que tem me sugado, a voz que tem me impedido de viver, faz meses. Em minha mão direita vejo aparecer uma faca. Aproximo-me da figura escura e a esfaqueio por trás, ouvindo seu urrar. Termina o sonho. Volto à realidade. Abro então então os olhos.

À minha frente vejo meu pai. Estou abaixado, ele está em pé, com lágrimas nos olhos. O sangue escorre de seu abdômen, do rasgo imenso que fiz de lado a lado. Ele cai no chão, já desmaiado. Enquanto eu sonhava, e achava que me salvava, matei-o.

Ouço as vozes do velho e da velha, meus avós maternos que nunca havia conhecido em vida, e de quem agora entendo que minha mãe nunca falava, cantando juntos nos meus ouvidos:

Tudo que era esperado foi feito,

Seu idílio atravessado por um parto.

Unindo todos que do sangue compartilham,

Nadamos agora no mesmo lago.

Grito até que eles parem, até que o mundo pare. Não sei se suportarei. Grito até que minha garganta doa, caindo no chão. Quando fico sem ar, e não tenho mais como abafar o que ouço, noto que não há mais vozes. Apenas meu cachorro latindo lá fora como nunca o vi latir.

Com as mãos ensaguentadas, busco o caderno de capa amarela e pela última vez anoto essas palavras, borrando as páginas e espremendo a minha feia letra para caber tudo nas últimas páginas. Filho de uma maldição, perdi pai e mãe para o destino e com meus próprios dedos dei cabo do homem que cuidou de mim como um próprio, um pai cujo erro foi não ter me abandonado. Entendo agora que toda a minha vida foi seguir um enredo premeditado. Olho para o céu.

Espero que, após tudo isso, não tenham tardado a entrar em casa e resgatado meu cachorro. Também torço para que não ignorem o caderno quando entrarem no meu quarto. Pois, após ter preenchido todas as páginas, essa frase sendo a última de todas, busquei a faca no chão e me matei.

[conto originalmente publicado em três partes na página Arquivos de Erebus: https://www.facebook.com/arquivosdeerebus/posts/307162983064384]

O Jogo

Meu pai nunca gostou da ideia de ter uma arma em casa. O pai de Beto, meu amigo, não pensava assim, no entanto. E Beto sabia. O pai não a mostrava para ele, mas Beto entrevia, pela fresta da porta, ele polindo a arma, em algumas noites de sábado.

Tínhamos quinze anos, com diferença de poucos meses. Em casa, moravam só Beto e o pai. Era filho único, e a mãe falecera doze anos antes. Fora baleada por assaltantes que invadiram a casa deles.

Era uma noite de sábado. Estávamos na casa dele, o seu pai tinha saído. Jogávamos videogame. Chovia, e eis que a energia caiu. Beto procurou velas na cozinha, não achou. Comentou então sobre achar que o pai, por alguma razão idiota, podia ter algumas no quarto, junto a uma bíblia. Segui-o, cada um com celulares à postos. Claro que eles nos ajudavam bastante, eram inclusive melhores que vela para iluminar, mas não durariam a noite toda, em especial se não sabíamos quando a energia voltaria para carregá-los.

No quarto, ele mexia num criado-mudo enquanto eu fuçava o outro. Ao mesmo tempo em que eu gritei “Achei!” com as velas em mão, sorrindo para ele, ele me olhava sério. Tinha a .38 do pai em mãos.

Pedi para ele guardar a arma. Tinha aprendido com o meu pai a não brincar com isso. Ele falou “É, sei, é perigoso, mas só estou olhando. Nem deve estar armada. Gosto de como ela brilha com a luz do celular”. Ele estava fingindo que a apontava para o espelho, imitando uma cena de filme, quando o pai dele apareceu à porta. “Então vocês gostam de brincar de arma?”, ele nos perguntou. De terno, como ele estava, em frente à janela pela qual se via a chuva na cidade, e mais nada, ele parecia um senhor feudal, dono de suas terras e seus vassalos.

Paralisados, eu apenas segurava a vela recém-acesa na mão – tinha levado já os fósforos para o quarto – enquanto ele continuava apontado para o espelho, com os olhos fixados nos do pai, que eram gélidos. O pai se dirigiu lentamente até Beto e em um movimento firme tomou a arma de suas mãos. “Vamos brincar, já que vocês gostam disso”.

Meu desejo era de fugir, até talvez o fizesse se Beto também saísse correndo, mas ele apenas conseguiu descer as escadas, acuado. Segui-o, com o pai dele atrás de nós dois, arma em punho. Cada passo na escada de madeira ressoava por toda a casa. Na sala, ele nos mandou desligar os celulares, e disse para eu pôr a vela no centro da mesa redonda de vidro. Era a única fonte de luz. Ordenou também que nós dois nos sentássemos, depois de fecharmos cada uma das cortinas. Obedecemos, congelados.

Sem pressa, como em todos os movimentos dele, ele por fim sentou-se também, defronte dos dois. Deixou o revólver na mesa, próximo a ele. Com a mão direita revirou o bolso enquanto com a esquerda coçava o cavanhaque. Colocou duas balas na mesa, o vidro estalando com o choque de cada uma, que pareciam pesar quilos naquela noite. Uma bala aparentemente nova, a outra usada. Ele pôs a nova na arma, tomando para si cada segundo como senhor do tempo que era, sem urgência. Girou o tambor, olhando alternadamente para os olhos de cada um. “Já que gostam de brincar, que tal um joguinho de roleta russa?”.

Queria me levantar, dar um soco nele, imobilizá-lo. Ele era maior que cada um de nós, mas não maior que os dois juntos. Beto, no entanto, nada fazia nem parecia que iria fazer. Apenas olhava para baixo, começando a lacrimejar. A voz do pai dele nos dominava: “Sendo o mais velho, acho justo ser o primeiro. Não acham?”. Apontou a arma para a própria têmpora. Desejei primeiro que o disparar do gatilho fosse em vão, que houvesse apenas o barulho do martelo da arma sendo estalado. Logo em seguida, desejei que a bala saísse, sim. Odeio a mim mesmo e me castigo e penso nisso todo dia antes de dormir. Mas foi a verdade.

Só ouvimos o clique, nada mais. Quase deu para ouvir Beto suspirar, mas não tenha certeza se ele suspirou mesmo. Talvez soluçasse. As suas lágrimas desciam sem barulho.

O silêncio da sala, acompanhado pela fonte ancestral de luz que estava no centro geométrico do triângulo formado por nós três, nos fazia sentir num espaço eterno, onde mortes eram decididas assim, ao acaso, ao sabor do vento. O pai de Beto, em seguida, olhou para cada um. “Bom, agora é a vez de algum de vocês. Qual é o mais velho, para manter a regra?”. Nos entreolhamos. Eu sabia ser o mais velho. No entanto, nada disse. Beto também estava mudo, sabendo da verdade e sabendo que eu sabia da verdade. Nos olhamos, eu e ele, durante vários segundos, questionando-nos silenciosamente qual de nós seria o primeiro a abrir a boca. Estava prestes a admitir que era o próximo quando o pai de Beto bateu a mão na mesa, impaciente. “Caralho, se nenhum sabe, portanto que seja meu filho. Vamos passar de pai para filho essa brincadeira. Seguir o caminho do sangue. Justo, não acham? Filho cujo sangue é o meu. Não?” Aquele foi o único momento da noite em que houve algo no olhar opaco de Beto. Houve ódio, direcionado a mim e ao pai. Ele sabia que eu tinha permanecido calado, que deveria ser eu, mas eu fugi, fui fraco. O pai dele segurou a arma com o cano, gesticulando para Beto que segurasse a arma. Ele não levantava o braço, entretanto. O pai deu-lhe um tapa no rosto. “O quê? Não vai brincar? Está com medo?…bom. É a sua vez, pelo nosso acordo. No entanto, permanece assim. Imóvel. Patético. De você não esperava diferente. Sabe por quê?”. Beto olhou para ele como um animal olha para o leão prestes a devorar as jugulares de sua família: odioso em seu pavor, pavoroso em seu ódio. “Se você não tem coragem de puxar o gatilho, eu o faço por você.” Em um movimento de mão, o pai de Beto girou a arma. No segundo seguinte ele já a segurava corretamente, cano apontado primeiro para a têmpora e então frontalmente para a testa do filho. “De um filho que não é meu, nunca esperei atitude ou coragem. Não veio antes e não virá agora.” Ele puxou o gatilho.

Dei um salto com o estrondo e o clarão. Abaixei o rosto com os olhos fechados e estremeci quando a cabeça ensanguentada de Beto se chocou secamente com a mesa.

Despenquei no chão, rastejando debilmente para baixo da mesa. Fui capaz apenas de ouvir o som da arma sendo largada na mesa e dois braços fortes me carregando para fora, pelas pernas. Sua voz soava grave e profética. “Sabe qual era aquela outra bala? A usada? Você sabe, não, jovem? Foi a bala que matou a cadela da mãe dele, doze anos atrás, no mesmo jogo. Da mesma maneira. Estava escrito, jovem. Pus a arma na minha cabeça antes dela. Não veio a bala. Isso é predestinado, não sabe? Aquela bala tinha sido feita só para matá-la, aquela vadia. E agora, finalmente, doze anos depois de ouvir a verdade dos seus lábios, doze anos olhando para o filho ilegítimo toda noite e em cada uma delas querendo matá-lo. Outra bala igualmente divina realizou o seu propósito. Não é azar dos que se foram, meu jovem. É a mão de Deus guiando as nossas.”

Me jogou na calçada encharcada. Eu chorava, sentindo o sangue de Beto espirrado em mim, minha roupa manchada ainda pela chuva que tudo lavava. Minha última visão daquela casa foi o pai de Beto fazendo o Pai-Nosso enquanto fechava a porta, olhando para os céus e sorrindo.

conto originalmente publicado na página Arquivos de Erebus: https://www.facebook.com/arquivosdeerebus/posts/301597296954286

O Fã

Já sonhou em se encontrar com o seu escritor favorito? Eu já. Era o escritor de suspense que mais amava, o responsável por minhas noites mal dormidas, consumido por suas histórias. Havia devorado todos seus romances e contos. Cada inovação sua era seguida de mil plágios de autores menores. Cada enredo original era prontamente copiado em mil rascunhos mal feitos – e ainda assim, publicados! – onde suas cenas e soluções tão elegantes e macabras eram distorcidas em clichês, deus, quantos clichês. Há décadas que era o nosso rei, e apesar disso, ou, quem sabe, justamente por isso, era recluso como um leproso medieval. Nunca respondia emails de fãs. Nunca aparecia para autógrafos e feiras, mesmo as várias feitas em sua homenagem. Tudo que tínhamos era a mísera foto em seu livro; era o que nos permitia ao menos conhecer seu rosto – um rosto tão banal e ainda assim único para nós, seus devotos – e saber como ao longo das obras – um best-seller atrás do outro – seu cabelo rareava e seus olhos se demonstravam mais e mais opacos.

Qual não foi a nossa surpresa quando os cem membros mais antigos do fã-clube oficial, e apenas eles, receberam em seus emails um convite para o lançamento de sua mais inédita obra, com a presença de ninguém menos que, sim, o autor, em carne, osso e imaginação doente. Foi o suficiente para, nas três semanas que separaram o recebimento do convite e o evento em si, meu coração bater febril em cada noite, justamente quando mais queria apenas dormir para que o tempo logo passasse.

Na noite do lançamento, nos reunimos num teatro. Ninguém havia na recepção; apenas havíamos entrado e preenchido os lugares. O palco, além da cortina vermelha fechada, continha somente um par de velas. O convite anunciava o evento para as vinte e três horas; qualquer outra informação nos permanecia oculta. Não sabíamos o nome do livro, e se teríamos que pagar por ele ou pelo evento. Nos fora exigida somente a presença.

Às vinte e três em ponto, as luzes artificiais se apagaram. Naquele momento, a débil iluminação das velas mal era suficiente para enxergar a cor da cortina. Nossos corações coletivamente batiam numa sinfonia desordenada. Sem aviso ou preparação, uma voz começa a nos falar do sistema de som:

“Bem-vindos, meus queridos leitores. Meus amigos, meus irmãos. Boa noite.”

Todos se entreolhavam, buscando ser gentis, inclusive respondendo o boa noite, até mesmo tentando descobrir se o autor – conhecíamos seu rosto, afinal – não já se escondia no meio de nós. Seria um truque perfeitamente razoável. Não parecia, no entanto, ser o caso.

“Imagino que estejam ansiosos para o lançamento que lhes aguarda hoje. Bom, antes de tudo, agradeço pelas décadas de leituras fiéis. A vocês tudo devo. Acreditem em mim. Tudo.

“Talvez os mais atenciosos tenham percebido, todavia, como minha saúde se deteriorou ao longo dos anos. Esse fato não pôde escapar às imagens, devem saber. Jamais quis retocar minhas fotografias…assim, não seria difícil perceber como me tornei mais e mais emaciado. Cadavérico, até, diria. Bom. Apropriado para um autor do meu gênero, não?

“A verdade é que o processo de criar tantas histórias me consumiu. Alimentar vocês, meus donos. SIM, vocês são meus donos, acreditem, não passo de um escravo cuja obrigação moral é parir, PARIR, enredo atrás de enredo para vos satisfazer. É tudo que esperam de mim. Como tive que aguentar ligações e mensagens e cartas pedindo mais histórias, solicitando continuações, exigindo finais! Tanta expectativa, justamente de quem apenas deveria me deixar em paz, agradecer e seguir a vida, somente isso. Tudo que esperei de vocês foi respeito e silêncio. Nunca houve, é claro. Antes que duvidem…li cada pedido que foi me enviado, seja por qual meio tenha sido. Não queria, nem mesmo devia, mas não resisti…”

À essa altura, algumas reclamações em voz alta já partiam da plateia; alguns se levantavam, enquanto outros, elevando a voz, denunciavam ser tudo uma farsa. Os mais frágeis choravam, tristes de terem ofendido seu ídolo.

“Bom, depois de hoje não haverá mais cobrança. Presentar-lhes-ei com a minha obra-prima. E assim, finalmente, terei paz. Esse presente é a única forma como posso lhes agradecer, depois de tantos anos de relação íntima.

“Ah, sim. Um último adendo necessário. Estou gravando essa mensagem às oito da noite. Quando ela terminar de ser tocada nos alto-falantes, será pouco mais de onze, creio…espero que gostem da obra que agora, sem mais espera, lhes dou.”

As cortinas se abriram. Nada vimos, no breu. Podem então ter se passado trinta ou trezentos segundos de escuridão. Minha ansiedade estava a tal ponto que eu não media mais a passagem do tempo. Subitamente, todos os refletores iluminaram o mesmo ponto no palco. De início nada consegui enxergar, ofuscado.

Aos poucos, minha visão se acostumou.

Numa poltrona preta, isolada, estava sentado o nosso escritor. Inconfundível. Sua boca estava aberta. Quando finalmente consegui abrir os olhos por completo, entendi o que nos aguardava. No corpo do autor, em toda a sua glória solitária no palco, estavam lápis enfiados em cada um de seus olhos e uma caneta tinteiro atravessava de lado a lado a garganta. A tinta se misturava ao seu sangue coagulado no peito. Todos os seus dentes haviam sido removidos.

Abafada por gritos e surtos da plateia, emanava dos altos falantes uma gargalhada.

conto originalmente publicado na página Arquivos de Erebus: https://www.facebook.com/arquivosdeerebus/posts/309109252869757