P. Sal se recorda de uma vez ter ouvido dizer que pensar em três motivos de gratidão antes de dormir trazia felicidade a longo prazo. Nesse momento ele já era grato por: 1 – ser aproximado na pista de dança, onde suar era esperado; 2 – o café da manhã mineiro não raro levar mais de 12 horas, envolta em petiscares demais e interesse pelo status de suas instituições mafiosas de menos. O 3 bem poderia ser a falta de faro de seus colegas, mas Sal preferiu deixar a lacuna. Dormir não parecia uma realidade próxima.
Dissimulando sua posição de combate numa versão lenta de lindy hop, a mente de Sal trotava por possíveis desculpas. Sua memória caiu subitamente em Bruna, antiga roomate, depois companheira de natação, depois flerte, depois ex-flerte com particular desgosto pela tendência de Sal de levar a cabo interrogativas relevantes com mentiras irrelevantes bem amarradas e desinteressantes. “A Bruna teve um filho. Eu vim pro bairro para visitá-la, mas acabou que ela precisou ir ver a sogra, e fiquei pela região sem ter o que fazer”. Seu colega de truco reajusta o sombreiro, num murmuro de concordância aturdida. “Mas é bom vê-los aqui!”, Sal emenda no hiato, guardando seu baralho. “Isso pede um brinde!”, e saí num rápido giro rumo ao bar. Uma senhora de plumas na cabeça em décimos de segundo consegue retirar seu copo recém-preenchido de ponche do caminho. Ela estufa seu peito, orgulhosa do feito, totalmente ignorante de que em certa de uma hora e meia, estaria sendo espancada por uma prostituta eslovaca no beco atrás do palacete.
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L. Refletindo bem, tudo indo certo até agora, pensa Sal. Refletindo bem, tudo que esses truqueiros sabem é usar uma derrota imprevista para um zap malandro como desculpa para mais uma dosezinha de tequila barata e mais uma carreirinha de Painus Polvus, a famosa cocaína amarelinha exportada por São Paulo, pensa Sal. Refletindo bem, tudo que preciso agora é convencer esse barman a me servir três doses de Salza pelo preço de uma, pois esse é todo o dinheiro que terei, pensa Sal. Refletindo bem, tudo que é necessário é roubar aquela garrafa cheinha de Salza de trás do balcão enquanto o barman se distrai com o milésimo ponche que a senhora de plumas na cabeça pede, pensa Sal. Refletindo bem, tudo que queria fazer esta noite pode se resolver com dois truqueiros borrachos de Salza para eu finalmente descobrir a senha da sala secreta do Sete de Copas, pensa Sal. Refletindo bem, três truqueiros borrachos, se meu fígado trabalhar pouco e a língua, demais. Pensa Sal.
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P. Refletindo bem, felizmente, era a única coisa que o espelho atrás do bar não estava fazendo. Permitindo os olhos de Sal percorrerem suas possibilidades bem refletidas, alheios às costas do barman, envolvidas em algum drinque desnecessariamente complexo. Sal busca as moedas em seu bolso, preparando-se para a barganha. Seus dedos, porém, encontram apenas uns fiapos e um furo do tamanho de uma cereja. Pausa, uma semibreve. Sal resolve tocar de ouvido. Contornando o balcão até uma abertura, desliza para trás do bar e se aproxima a uma dupla de jovens quase esfarrapados – se por fantasia ou necessidade, difícil antecipar -, um deles girando algumas moedas nos dedos. “O que vai ser, queridos?”, Sal lança. Alcança sob o bar duas Pilsner Urquell e pega em troca o troco. Começa rumo a um engravatado estendendo uma nota polpuda ao bar – e à garrafa de Salza próxima dele – quando o barman dá por sua presença e o interpela. “O chefe mandou que eu viesse ajudar”, Sal fala. “O chefe aqui sou eu”, Sal escuta. Desafino no improviso. 5, 6, 7, 8. Sua mão esquerda alcança o baralho no casaco, corta com destreza canhota o maço, e estende em um floreio uma série de cartas escondidas. “Escolhe uma carta”, Sal tenta.
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L. O barman pisca incrédulo para o leque de cartas na mão de Sal, dando apenas rápidas olhadas em direção ao salão atrás de saber qual dos funcionários estaria por trás daquilo. “Chefe, chegou agora o momento que vai mudar sua vida. Se você retirar daqui da minha mão uma carta de paus ou espadas, você, eu e dois amigos bebemos cada um um shot de tequila, por conta do bar. Mas, espera, o-lha só, se você por a-ca-so sacar uma carta qualquer de copas ou de ouro,…”. Pausa dramática. Sal levanta apenas a sobrancelha esquerda, em gesto ensaiado por volta dos 15 anos no espelho do banheiro da família por dezenas, talvez uma centena, de vezes, com o intuito de fazer novos amigos na escola (não deu certo). O barman, compenetrado, tendo segurado durante todo esse tempo na mão esquerda um frasco de angostura e na direita uma camisinha usada, sem sequer um nozinho para fechar (você não vai acreditar em como os jovens andam harmonizando seus drinques), aproxima o rosto do de Sal. “…então catchíduru berin djidum, mamadíbulu catí gudum.” O barman aperta o rosto em confusão. Num lance de prestidigitação – talvez seu único real talento, essencial para ter avançado nas fileiras do truco –, Sal guarda as cartas na manga da canhota enquanto com a direita arranca os objetos das mãos do barman. Sem interromper o movimento, derruba os respectivos conteúdos da angostura e da camisinha nos olhos esquerdo e direito do homem, que, apesar de gritar agora com o ardor, perceberá amanhã pelo toque na pálpebra direita que descobriu um hidratante maravilhoso para a região dos olhos. Com a esquerda, Sal recolhe a garrafa de Salza abaixo da camisa enquanto com a direita toma apoio para saltar o balcão. Segue para os seus colegas truqueiros e com alguma elegância pero no mucho lhes vai empurrando pelos ombros rumo a uma discreta saída na lateral do prédio: “Meus caros, tenho comigo uma garrafa quase cheia. Além disso, muita sede e nenhuma vontade de permanecer nesse local insalubre. Alguém conhece um bom puteiro? De preferência que não pague para entrar? E que não embacem de entrar com essa nossa tequilazinha?”
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Parabéns Meu Filhão, pela leveza e sapiência de seus contos.
Bjão do Paizão
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