Sem saber que acordava, Saulo encarou o teto, tremulante como as ondas cerebrais repletas de imagem que ainda ecoavam. Ao lado do despertador chinês estava o seu Homer Simpson, com testa franzida e gotas da excessiva cobertura da rosquinha a melar a superfície da mesa de plástico que fazia as vezes de criado mudo. Homer lhe observava com absoluta seriedade, perguntando porque diabos ele já saía da cama se o relógio nem sequer tinha disparado ainda. Não sou eu que tô me levantando, responde Saulo, deve ser outra pessoa, porque jamais sairia por pura vontade de onde estava até agora. O número que Jandira recitara no seu ouvido e que Saulo tivera o bom senso de registrar no celular era factual ou um produto da sua imaginação, não mais palpável que o denim da jaqueta que ela usava e estava prestes a remover no fim repentino do sonho? Anotou-o de novo, agora no que poderia talvez tomar como vida real, se é que se lembrava corretamente dos dígitos, para tentar conferir durante um momento no trabalho.
Aglutinado contra paredes humanas cuja formação, por maior que fosse o número de possibilidades que pudesse apresentar num dado momento, aparentava nunca se alterar de um dia para o outro, Saulo percorre fisicamente uma Metrópole passável como não-violenta no início do século XXI. Todavia, o que ele vê são múltiplos pequenos focos de ação cujos participantes são personagens de um filme de guerra etéreo, não inteiramente desprovido de alívios cômicos. Morteiros que disparam à abertura de semáforos, pelotões que perdem a formação no súbito aparecimento de emboscadas formadas por mendicantes ou maltrapilhos, helicópteros audíveis acima de toda a cacofonia que podem perfeitamente portar napalm ou executivos do ramo da Construção Pesada, ambos desenvolvidos sob rigoroso escrutínio para combater aquele que é o terror último de todos os envolvidos, o habitat natural.
O portal da Corporação, de vidro temperado semifosco com o logotipo de L invertido gravado a laser, fecha-se num pf surdo que o isola da civilização. O microcosmo o recebia com um largo sorriso asséptico, para gentilmente guiá-lo por algumas centenas de metros de corredores repletos de funcionários ensimesmados, revestidos com um piso aparentemente criado apenas para que o sapatear de quem ali passava se prolongasse até o infinito, uma câmara anecoica reversa.
Carlos, seu vizinho de expediente, concentrado no que devia ser uma planilha eletrônica intrincada demais para essa hora do dia, recebe Saulo com um bom dia inesperadamente vívido.
“Por que essa disposição toda? Festa privê com a namorada ontem? Ou talvez não tão privê assim?”
“Muito melhor, meu querido Sal. Olha isso aqui.”
“Ótimo, parece um puta sapato horrendo. Achou na rua?”
“Não, porque o primeiro sem-teto que experimentasse essa maravilha aqui teria ficado tão feliz que iria abraçar o seu cachorro na hora e chorar agradecido pela primeira coisa boa que a cachaça lhe trouxe. Além do cachorro, claro. Estou falando sério.”
“Inacreditável. Vou pôr meus fones de ouvido antes que também queira abraçar o sem-teto só para poder parar de ouvir o que você diz”.
“Escuta. Esse par de sapatos estava na minha casa. Usei durante as entrevistas de estágio da faculdade, e achei que tivesse perdido para sempre numa festa que dei. Acontece que eles só estiveram, durante cinco anos, pendurados atrás da geladeira. Não tenho ideia de como pararam ali. Ou de como nunca senti o cheiro deles. Acho. Aliás, isso explica muito. Mas esses anos, amigo, posso garantir, recebendo esse calorzinho ali o dia inteiro, deixaram esse couro tão macio que até acho que vou patentear a ideia.”
“Mas quem você acha que…”
Num átimo, Saulo vê um ponto brilhante através da janela de Carlos movendo-se rapidamente do além em direção à entrada do prédio lá embaixo, poderia ser um aeroplano voando perigosamente baixo, mas aqui tem tantos edifícios, não seria possível, será que se trataria de um…
O foguete explode ao que não devia passar de dois metros do chão e do portal. Saulo assistiu à toda a trajetória mesmerizado como um inseto incapaz de fugir ao seu destino diante da lâmpada, procurando idiotamente refugiar-se debaixo da mesa apenas no último segundo. Cautela inútil, visto que os reforçados vidros contêm quase todo a parcela do impacto que chega à sua sala. Os embasbacados funcionários da Corporação naquela manhã sofrem apenas o choque de achar que hoje tudo poderá finalmente ser diferente, e antes que consigam imaginar se isso será bom ou ruim, invasores começam a adentrar o prédio armados de fuzis, facas e balaclavas.
Com gritos masculinos e femininos em alturas variadas, o som do alarme e o guinchar distante dos sprinklers num intervalo dissonante e a percussão agitada que o exército invasor providenciava, todo o espaço corporativo foi dominado por uma sinfônica ruidosa cujo maestro decidira não ensaiar previamente. Todos começam a correr em direções únicas, chocando-se, xingando-se e por fim dividindo-se em três grupos, um que tenta entrar todo de vez na saída de emergência, outro, bem menor, que segue em direção à entrada com a esperança de não serem mortos pelos invasores, sejam eles quem forem, e, por fim, um formado pelos que secretamente acalentavam desejos bélicos dia e noite, que em menos de um minuto removem todos os periféricos eletrônicos de cima das mesas, virando-as para formar uma rústica barricada. Saulo olha para todos os lados, tem apenas um relance dos calçados novos-velhos de Carlos por entre o grupo que se aperta na saída, e resolve, solitário, engatinhar para um corredor que a essa altura continha apenas sapatos de salto de alto abandonados.
Tiros eram ouvidos, sem que se conseguisse facilmente associar quais gritos correspondiam a quais disparos. Saulo, escondido ao lado da máquina de xerox num canto do almoxarifado cuja localização sempre difícil agora evidenciava ser tremendamente vantajosa, passava suando pelos contatos da agenda do celular perguntando-se para qual valeria a pena ligar naquele momento. Bombeiros, não. Polícia, não a tempo de eu não morrer. O possível número de Jandira…quem sabe dar um oi antes do fim. Se for o número dela. Se ela ainda estiver viva. A essa altura, os ses não têm muito mais peso. Manda uma mensagem, aki eh saulo, tah viva? O barulho proveniente do escritório diminuía pouco a pouco, com ecos de passos indo e vindo sendo a única confirmação de atividade humana. Os invasores não devem ter chegado à barricada ainda. Saulo se indagava quanto a como os seus colegas poderiam se defender quando uma mensagem chega. Jandira, escondida lado vaso, cheiro ruim, hall, 5 banheiro fem, ultimo box, ainda viva, que porra tah acontecendo? Uma pequena explosão eclode no escritório. Não há como chegar ao Hall dos Banheiros no 1º andar sem passar pela sala onde agora ao menos um dos lados deve estar disparando muitas balas.
Saulo se esgueira colado ao drywall, com o celular em mãos, e põe metade da cabeça para fora. Nas mãos dos seus colegas entrincheirados, alguns dos quais já caídos, surgiram metralhadoras, com as quais conseguem manter os invasores cautelosos atrás de pilares e esquinas. De ambos os lados vêm tiros, não parecendo necessariamente errar seus alvos, no entanto ninguém demonstra estar de fato com medo ser alvejado. São dois lados de uma gincana onde as bolas da infância foram substituídas por cartuchos. Invasores e combatentes estão em igual número, com novos recrutas aparecendo de cada lado na eventualidade de alguém ser realmente atingido, tudo de forma a manter-se um equilíbrio primordial. Saulo responde a Jandira com uma mão só, a kminho, se protege. Tão afetuosamente apegado à parede quanto possível, vai lentamente em direção à saída, torcendo para que a sua invisibilidade social se mantenha mesmo numa situação tão heterodoxa. No percurso, atravessa o corpo de um dos invasores, morto mas com menos sangue à sua volta do que se poderia supor, e toma a sua arma para si.
Os corredores, sem entidades físicas visíveis, sejam elas vivas ou mortas, entretanto permeado por sons provenientes de embates seculares que poderiam estar acontecendo ali ao lado ou não, levam Saulo ao Hall dos Banheiros, uma solução orgânica da Corporação para lidar com o problema eterno da falta de toaletes disponíveis, uma das suas razões sendo a privacidade primeva que só um banheiro fornece para atos como dormir, chorar, usar a internet e até mesmo algumas funções fisiológicas.
Saulo arromba a porta do 5º banheiro feminino do Hall com um chute à moda americana, apontando logo em seguida a arma, que nunca antes usara, para dentro. Nenhuma alma. Procede até o último box, porta fechada. Alguém aí? Sem resposta. Jandira? Jandira? Vim para lhe salvar, meu bem! Bate na porta até concluir que ela provavelmente não está acordada e, sob o risco de machucá-la entrando de maneira forçada, atira na fechadura do box ao lado, entra e sobe no vaso para ver por cima.
Vazio. Só um celular boiando na água. Antes que perceba, uma multidão invade o local, colegas de trabalho, soldados, fotógrafos, repórteres, curiosos, Carlos, até Jandira!, para lhe conter, tomam sua arma, algemam-no, registram sua cara de imbecil, colocam um saco plástico preto na sua cabeça e o levam embora para sempre.
Na manhã seguinte, a Metrópole e a Corporação não tinham outro assunto no café.
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(Conto que escrevi perto de 1 ano atrás; finalmente pondo no blog)