Nunca tinha ouvido vozes dentro da cabeça, até o dia em que uma me pediu para escrever essa história.
A voz me falava que coisas dementes tinham acontecido na nossa casa, onde eu morava com meu pai e meu cachorro. Disse-me que eu seria visitado por várias pessoas, todas mortas há tempos, que viriam para me mostrar através de visões o que sabiam. Avisou-me também que eu não precisava ter medo. A mim caberia somente registrar os relatos num caderno de capa amarela, para que os horrores passados na casa não permanecessem desconhecidos aos vivos. Isso me foi dito pela voz gentil, a primeira de todas que viriam. Tremi, pensei na possibilidade de estar enlouquecendo, mas no íntimo sabia que não. Sempre pensei que pudesse existir o além, apenas pensava que não seria por mim que ele buscaria fazer contato. Assumo ser idiota o bastante para me empolgar com o desconhecido e perigoso, mas não burro o suficiente para ignorar uma chance única quando ela aparece. Na dúvida, comprei um caderno de capa amarela – sim, a capa precisava ser amarela, a voz me dissera –, e deixei-o sobre o criado-mudo. Na primeira página, à lápis, anotei essas linhas que você lê.
Segui minha vida, fazia faculdade de administração durante o dia. Algumas semanas haviam se passado desde o primeiro contato e não houvera qualquer voz ou aparição no escuro, tampouco cadeira balançando, luz piscando, nada. Provavelmente eu tinha tido um surto, meu subconsciente devia estar querendo me dizer algo, quem sabe um complexo de édipo reprimido, sempre é o tal do édipo, dizem.
Uma noite eu estava sozinho na cozinha, à noite, jantando um macarrão ao molho sugo. Meu pai estava fora de casa. Situação perfeitamente comum, sempre foi tranquilo eu ficar sozinho. Costumava pôr músicas para disfarçar um pouco a solidão, mas nessa era apenas eu, o prato e o silêncio, com o nosso cachorro preso do lado de fora, nem latir ele latia. Ouvi então, num tom calmo, a voz de uma velha. Sim, vai ter que ser aqui mesmo, minha filha, abre as pernas, a bacia está pronta. Abre as pernas que já estou com a agulha limpa. Olhei em volta, obviamente não havia qualquer senhora, muito menos filha. No medo cheguei a gritar, perguntar quem era que estava ali, o que queria, mas sem resposta. Ao menos resposta para mim. Pois a voz continuou: não, não adianta, precisa ser agora, você sabe, o combinado era esse, o próximo pode ser seu, ele crescerá e se tornará um garoto lindo, um garoto lindo e branco, lindo e branco, mas esse é nosso, sete meses, era o combinado, é o melhor para todos. Sempre fui imaginativo, algo que achei que pudesse ser bom, quem sabe até proveitoso para a futura carreira profissional, mas naquele momento, meu deus, odiei, queria apenas ser opaco de imaginação, nada mais, e não houve jeito, pois meus pés já estavam molhados, como se eu estivesse dentro da bacia, e a voz da velha soava à minha orelha, como se ela estivesse apoiada nos meus ombros e falasse a centímetros, Sim, bem assim, a bacia já está com as ervas necessárias, alecrim, arruda e anis, é como está no livro, seu filho é sujo e precisamos limpá-lo, eu e seu pai sabemos o que é melhor para você, não adianta voltar atrás, filha, quem mandou ter um filho com aquele homem, aquele preto, aquele preto imundo, agora esse é nosso, você ficará feliz, nós ficaremos felizes. À minha frente estava lá ela, a filha, uma jovem, mais nova ainda que eu, de pernas abertas, e quem abria suas pernas era eu, eu era a velha, eu estava vendo o que ela viu sabe-se-lá em que década, e minhas mãos, digo, as da velha, que agora eram minhas, elas abriam a vagina da filha, e lá punham uma agulha enorme, sim, eu queria gritar, mas não conseguia, pois de mim só saía a voz da velha, dizendo abre mais, abre que não quero te machucar, só a criança. Eu queria parar de pôr aquela agulha mais e mais para dentro, mas não podia, pois não as controlava. O sangue passou a jorrar da filha, que gritava, e a velha, digo, eu, eu apenas pedia, quase cantava, como numa canção de ninar Dorme, dorme, meu bem, que a noite já vai passar, em minhas mãos saía o natimorto, o feto negro, ele caía na bacia, um ser desforme, que talvez não chorasse mas para mim chorava. Agora é a hora do ritual, que o sangue do filho, sendo o mesmo sangue do pai, derrame aqui, que do seu pai derramará. A filha gritava, ela queria fazer algo, mas estava prostrada, incapaz. Então as mãos da velha agarravam uma navalha e cortavam o pescoço do feto, o sangue jorrava, tornando a bacia um mar vermelho. Gritei e fechei os olhos. Quando os abri, estava na cozinha da minha casa, estava deitado de lado no chão. Não havia mais feto nem filha nem velha. Corri para o meu quarto, registrei tudo que pude no caderno amarelo, desse modo, desenfreado, não tinha como pensar nem como agir de forma mais útil. Apenas fechei todas as janelas de casa, tranquei as portas e dormi, ou tentei dormir.
Na manhã seguinte, mais calmo, acordei com meu pai perguntando para mim porque eu tinha espalhado o molho do macarrão em todo o chão da cozinha. Me xingou dizendo que eu tinha feito uma bagunça do caralho. Eu me limitei a responder que tinha sido o cachorro e saí antes que ele pudesse fazer mais perguntas ou imaginar se o cachorro poderia mesmo subir na mesa. Não tive capacidade de ir à aula nesse dia. Depois que todos já tinham saído passei duas horas no banho, tentando limpar o sangue do corpo. Não havia sangue para quem me visse de fora, mas por dentro para mim estava sujo, absolutamente sujo pelo sangue daquele feto. Ao final, enquanto me secava, olhando no espelho e querendo acreditar que, sim, a voz que ouvia saindo de mim mesmo era de novo a minha, as mãos que manejavam a toalha eram as minhas, ouço novamente a primeira voz, a que iniciou tudo. Essa foi só a primeira. Viva para saber e escreva.
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Enquanto não sabia o que esperar dali para frente, minha única opção era a de seguir adiante. Descobri que odiava o que estava acontecendo comigo, e que provavelmente não suportaria outra visão. Tinha escolha? Provavelmente não.
Quem então era a velha da minha alucinação? Poderia não ter mais me indagado, poderia até ter fingido que nada daquilo tinha acontecido, mas os pesadelos não contribuíam. Claro, tive pesadelos. Tinha escolha? Provavelmente não.
Neles eu repetia e vivia novamente a cena, como a vi, como a vivi naquela noite na cozinha. De novo era a velha. De novo tinha o natimorto em mãos e derramava seu sangue. De novo acordava gritando sozinho na cama, que estava seca, porém eu mesmo me sentia encharcado. Não que tivesse me mijado. Eram a água da bacia e o sangue fetal que não abandonavam a minha pele. Em cada uma dessas noites, eu alcançava o meu caderno de capa amarela, e escrevia e escrevia. Punha em papel cada detalhe, palavra, tom de pele, derramamento de sangue que presenciara. Mas a verdade é não tinha nada de novo a acrescentar. Era sempre a mesma visão.
Num café-da-manhã, não resisti e perguntei a meu pai quem tinha morado na nossa casa antes da gente. Estávamos lá fazia apenas cinco anos, sendo que antes estava abandonada, até onde me constava. Ele respondeu que sabia apenas de uma família, que tinha morado lá nos anos 80. Pai, mãe e filha. O pai e a mãe eram bem mais velhos que a filha, poderiam ser até seus avós, todos tinham vontade de questioná-los quanto a isso, mas eles nunca permitiram haver intimidade com os vizinhos. Essa filha então fugiu de casa com trinta e poucos, sendo que jamais se soube para onde ela foi. O casal de idosos por sua vez morreu pouco tempo depois num acidente horrível. Ambos foram encontrados carbonizados no quintal, ali mesmo onde eles moravam. Onde eu moro. Perguntei, depois de minha espinha ter congelado, porque caralhos ele nunca tinha me contado essa história. Ele deu de ombros e respondeu, olhando para os lados, que achava tudo aquilo meio com cara de inventado. Perguntei quanto ao que aconteceu com a casa, se alguém tinha tido a coragem de morar aqui logo depois. Ele se resignou a fechar os olhos e se levantar para sair. Quando já estava na porta respondeu que não sabia de nada, mas que achava difícil o imóvel ter permanecido muito tempo vazio. As necessidades de habitação superavam qualquer superstição. Também disse que iria perguntar para os vizinhos mais velhos se sabiam de algo além disso.
O incidente inicial da visão na cozinha aconteceu em abril. Maio se passou sem maiores catástrofes, ao menos além dos pesadelos que àquela altura já haviam se tornado próximos de diários. Numa noite em junho, com medo de fechar os olhos no escuro do quarto – um temor que eu nunca tinha tido, nem mesmo criança, mas que as aparições do feto em minhas noites estavam me apresentando –, me levantei da cama e fui até a sala. Eram onze e quarenta e cinco. Meu pai, que não devia ter ideia do quão paranoico e demente eu me tornava, dormia. Já tinha pensado mais de uma vez em abrir o jogo para ele quanto a tudo que estava ocorrendo, mas nunca senti intimidade. Talvez nunca tenhamos sido próximos de verdade.
Da janela da sala, o quintal brilhava sob as luzes brancas e fosforescentes da rua de trás. Nos meus primeiros dois anos na casa ainda tinha o hábito de brincar de bola ali, até mesmo sozinho, mas desde que passara na faculdade não via mais graça. Lembrei-me da história que meu pai havia me contado, é claro. Foi inexplicável mas irresistível a tentação de, descalço, abrir a porta dos fundos e pisar naquele ambiente. O concreto que passou a arranhar os meus pés era o mesmo de sempre. Nada de novo naquele local, e sinceramente não sei o que poderia ter de diferente naquela noite. As mesmas duas bicicletas largadas – uma minha, outra do meu pai, e só agora me dava conta de que nunca tínhamos pedalado juntos –, as ervas crescendo sem que ninguém as podasse – sempre fomos horríveis em cuidar desses detalhes desde que mamãe morreu de câncer –, o tronco ancestral de bananeira que permanecia ali contra todas as intempéries. Já tinha estado naquele ambiente centenas de vezes, tanto de dia como de noite.
Desisti e olhei para o céu, curioso. Talvez visse ao menos a lua e algumas estrelas, para não perder a viagem. Gosto de astronomia. Assim que achei Marte no céu, no entanto, senti um odor diferente. Querosene. Hum. Lá fora? Não. Vinha de dentro. Meus pelos do braço se arrepiaram inteiramente, pois, ainda olhando para cima, não quis mais descer os olhos. Sabia o que poderia encontrar. Havia sentido a mesma vibração na pele que sentia cada noite, ao rememorar minha visão. Preferi fechar as pálpebras e conviver, por alguns segundos, apenas com o odor. Meu coração já estava disparado e eu me comportava como alguém que no cinema fecha os olhos porque sabe que vai levar um susto. Antes que apenas pudesse dar meia-volta e sair correndo, gritar, acordar meu pai, nem sabia mais o que poderia fazer, ouvi um grito dilacerante, no pé-do-ouvido. Na mesma voz que me abalava diariamente. A da velha. Abri os olhos imediatamente, esperando o pior. O rosto dela estava colado no meu.
Lá ela estava, nua, aquela pele horrível, pendente. Tudo em seu corpo era banha derretida, e ela olhava para mim, mesmerizada, doente, Vamos, é a etapa final do ritual, ela fugiu com ele, nossa filha, a puta fugiu com o homem preto. Façamos a nossa parte, é só o que falta. O ritual nos levará ao próximo estágio da vida. Só resta o toque das chamas, venha, será o nosso último abraço, meu querido, e jogava querosene em si, encharcando a pele pálida e doente, e então passou a jogar em mim. Foi só então que olhei para baixo. Eu agora era um velho.
Meu corpo era algo de que tinha nojo, cheio de perebas, pelos brancos, tudo enrugado, meus peitos caídos, minhas mãos frágeis e incapazes. A velha jogava mais querosene em mim. Eu sentia minha cabeça molhando, meus olhos sem conseguir enxergarem direito pela torrente. Eis que a velha me abraça, e eu só queria fugir, mas eu não era eu, eu era o velho. Meus braços a recebiam contra a minha vontade. Ela apenas sussurra no meu ouvido, com a voz rouca e molhada, É chegada a hora, e finalmente ouço minha própria voz, mais aterrorizante ainda de ouvir saindo da própria garganta que a da velha. Voz profunda e rouca, num cântico que eu jamais ouvira mas que agora na visão recitava como se todo dia o lesse, enquanto a velha acendia lenta e ritualisticamente um fósforo.
Que as chamas venham,
Nossa carne queimai,
Dela a pura alma libertai.
Que a cortesã se arrependa
Do desatino que causou,
Pois do destino não se livrou.
Que sua prole carregue a marca.
De delírios ela padecerá
Aguardai; a morte abraçará.
Ao fim do último verso, solta a velha o fósforo sobre nossas cabeças, e a noite se torna dia. Tudo brilha. Sinto as chamas consumindo cada membro. O ímpeto de fugir que antes existia foi substituído por dor, não sentia nada que não minha própria pele derretendo, enquanto a velha me abraçava mais e mais forte e a sua pele parecia se misturar à minha. Eu queria fechar meus olhos, mas os do velho tinham permanecido todo o tempo abertos, de forma que eu era obrigado a tudo testemunhar. Até mesmo quando, por entre as chamas, um dos olhos dela cai do rosto. Nós dois despencamos, sinto que não existo mais, apenas o vermelho do fogo, e dor, e escuro.
Acordei com sol no meu rosto e o meu cachorro me lambendo. O quintal era de novo o meu quintal. Sem lua, sem querosene, sem chamas. Meu corpo era o meu, e estava intacto. Abracei meu cachorro e chorei durante meia-hora, às seis da manhã. Apenas eu e ele.
Ao fim, lembrei-me do meu papel nessa tragédia do horror e anotei no caderno amarelo essas palavras que você lê, junto com o cântico do velho. Achei, enquanto escrevia, que pedaços da minha pele ainda caíam, revelando a carne queimada, trazendo-me todo aquele cheiro de volta. No segundo seguinte, eu piscava, e estava lá a mão novamente inteira.
Novamente tomei um banho longo. O sangue da alucinação anterior fora substituído por cinzas, queimaduras, uma sensação de que por mais fria que pudesse ser a água, não seria o suficiente, viveria com rosto, mão, pernas e torsos escoriados, um semihumano, uma aberração. O rosto no espelho, todavia, permanecia o mesmo. Jovem, saudável na medida do possível. Ao deitar, exausto, tentado a apenas permanecer em posição fetal e a tudo abandonar, recebo a visita da voz, a primeira, a gentil, que há algum tempo não me vinha com seus agouros. Essa foi a segunda. Espero que esteja prestando atenção em tudo que vê e ouve. Haverá só mais uma.
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Por tudo que já tinha passado, aprendi nas semanas seguintes, da pior maneira, como o meu corpo reagiu aos dias mais negros da minha vida. Minhas unhas passaram a cair, assim como o cabelo. A minha pele tinha a cor e a consistência de farinha. Passava toda noite com os olhos vermelhos observando cada ranhura do teto do quarto, plenamente visíveis à luz acesa. O meu corpo pedia descanso e eu até aceitava repousar na horizontal, mas não tolerava fechar os olhos. Mesmo que não dormisse, a penumbra das pálpebras já era o suficiente para que tudo que vivi em segunda mão através das minhas visões voltasse à tona. Minha vida universitária também, é claro, sofria. Já nem ia mais às aulas fazia tempo.
Meu pai, que estranhava o meu estado há algum tempo e tinha me pedido mais de uma vez que eu fosse ao hospital – ele não tinha como ir comigo –, me encurralou numa noite. Jantamos, eu e ele, em silêncio. Apenas as garfadas e os mastigares de boca aberta – dele – ressoavam na cozinha. Terminei com pressa o meu jantar e já me levantava para levar o prato à pia, quando ele puxou meu braço. Mandou eu me sentar. Olhou sério para mim enquanto calmamente deixava os talheres sobre a mesa. Disse que iria perguntar só uma vez. “Filho. Você tem usado drogas?”. Respondi rindo que não, óbvio. Nunca faria isso. “Certeza? Não vai mentir para mim. Pó, pedra, nada?” “Não.” “Já viu sua cara, filho? É cara de doente. Cara de drogado.” “Pai, vai se foder, sei o que faço ou deixo de fazer, e garanto que não se trata de drogas”. “O que é então?”. Não respondi, pois já tinha largado o prato lá na mesa mesmo e saído para o quarto, batendo a porta.
Qualquer vontade que tivesse tido de me abrir para o meu pai já não existia mais. Poderia falar das aparições para ele, poderia lhe contar que tinha presenciado como os velhos que moraram aqui faz trinta anos fizeram um ritual de sacrifício com o feto da própria filha e que depois ainda vieram a se matar. Poderia lhe dizer sobre como eu tinha certeza de que isso ocorrera de verdade, não sendo meras alucinações minhas. Mas à essa altura, seja lá o que dissesse faria ele apenas pensar que, bom, se tratavam de drogas. E que eu estava louco e viciado e precisava ser internado.
Deixei a luz acesa e passei um bom tempo em pé observando o mundo da janela. Assistindo ao desfilar das pessoas que passavam lentamente na rua trazendo suas sacolas com pão e manteiga para casa, ignorantes de tudo o que acontecia fora de suas banalidades. Sem jamais serem capaz de acreditar que tão próximo delas havia alguém cuja noção de realidade se esvaía. Então deitei na cama. Num ímpeto, alcancei o caderno amarelo e passei a anotar nele tudo que me veio. Todas as possibilidades idiotas a que poderia recorrer para me salvar. Falar com a polícia: ridículo. Recorrer a um exorcista ou a um pai-de-santo: não conhecia nenhum, tampouco saberia o que falar. Quem sabe, fugir, virar indigente, dar ao menos o descanso ao meu pai de não ter mais um filho em casa que ninguém é capaz de ajudar. Cheguei então a procurar a minha mochila de viagem, mas a verdade é que não teria coragem de sair assim pelo mundo. Sou e sempre fui fraco. Por fim, joguei novamente o caderno no criado-mudo e me sentei num canto do quarto, com a cabeça escondida entre as pernas. Sonhei.
Vi uma moça branca de vinte e poucos anos fugindo num Fusca com um homem negro. A mesma do parto. Vi eles morando num sobrado, felizes. Talvez no Rio de Janeiro. Os dois na cama, transando, contentes, perfeitos. Sorrindo enquanto depois escutavam música em vinil. Ele trabalhando no mercado enquanto ela está grávida em casa. Ela tendo o filho, sem que ele estivesse presente, sem quase nenhum amigo para parabenizá-la e trazê-la para casa. Ela preocupada, cuidando do recém-nascido enquanto não tinha notícias do marido. A polícia batendo na porta e lhe contando que o haviam achado. Ele fora degolado na volta do trabalho e tivera seu corpo jogado num córrego. Ela chorando enquanto amamentava o bebê, contando carinhosamente para o filho de seu irmão, que antes mesmo de nascer já tivera o destino igual ao pai. Vi anos se passarem à minha volta enquanto ela cuidava do filho por conta própria. Ela passeando de mãos dadas com o garoto, já um pouquinho maior, mas ainda de fralda. Um colega de trabalho, gentil e observador, se aproximando dela. Numa noite, o filho dormindo na casa de um amigo de escola, vi seu colega a recebendo em seus braços. Reconheço-o agora. Ele é meu pai, e nunca tinha me contado que não era o meu pai biológico, nossas peles e traços sendo tão parecidos. Não sei o que pensar e não tenho tempo agora. Já me reconheço no que vejo. Vejo momentos que já lembro de ter vivido. Somos nós três, eu com seis, oito, dez, quinze anos. Vejo agora ela doente de câncer. Ele ao seu lado chorando e prometendo que ia cuidar de mim como fosse dele.
Enquanto vejo a mim mesmo no quarto do hospital ao lado dela, sem cabelos, percebo sons que não fazem parte da imagem. Sons de passo, sons de madeira. Cada vez mais me distraio do que me é apresentado. Nas minhas visões já estamos na casa onde moro. Vejo meu pai e eu tomando café-da-manhã juntos, um pouco calados, estranhando a ausência de uma terceira figura. Tenho mais e mais dificuldades de me concentrar – parece que estou acompanhado de algo que me faz mal. Percebo então que consigo agora fazer o que quero, como num sonho lúcido. Na minha casa em que sonho – tão parecida, tão igual à casa de verdade onde vivo –, é noite, e está tudo vazio. Estou na sala, sigo para o quarto. Vejo a mim mesmo sentado e uma figura à minha frente. Ouço sua voz. Não a reconheço nem a entendo. Ela fala no ouvido do meu eu sentado. Ela me castiga e me suga. Entendo finalmente que é esse o ser que tem me sugado, a voz que tem me impedido de viver, faz meses. Em minha mão direita vejo aparecer uma faca. Aproximo-me da figura escura e a esfaqueio por trás, ouvindo seu urrar. Termina o sonho. Volto à realidade. Abro então então os olhos.
À minha frente vejo meu pai. Estou abaixado, ele está em pé, com lágrimas nos olhos. O sangue escorre de seu abdômen, do rasgo imenso que fiz de lado a lado. Ele cai no chão, já desmaiado. Enquanto eu sonhava, e achava que me salvava, matei-o.
Ouço as vozes do velho e da velha, meus avós maternos que nunca havia conhecido em vida, e de quem agora entendo que minha mãe nunca falava, cantando juntos nos meus ouvidos:
Tudo que era esperado foi feito,
Seu idílio atravessado por um parto.
Unindo todos que do sangue compartilham,
Nadamos agora no mesmo lago.
Grito até que eles parem, até que o mundo pare. Não sei se suportarei. Grito até que minha garganta doa, caindo no chão. Quando fico sem ar, e não tenho mais como abafar o que ouço, noto que não há mais vozes. Apenas meu cachorro latindo lá fora como nunca o vi latir.
Com as mãos ensaguentadas, busco o caderno de capa amarela e pela última vez anoto essas palavras, borrando as páginas e espremendo a minha feia letra para caber tudo nas últimas páginas. Filho de uma maldição, perdi pai e mãe para o destino e com meus próprios dedos dei cabo do homem que cuidou de mim como um próprio, um pai cujo erro foi não ter me abandonado. Entendo agora que toda a minha vida foi seguir um enredo premeditado. Olho para o céu.
Espero que, após tudo isso, não tenham tardado a entrar em casa e resgatado meu cachorro. Também torço para que não ignorem o caderno quando entrarem no meu quarto. Pois, após ter preenchido todas as páginas, essa frase sendo a última de todas, busquei a faca no chão e me matei.
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[conto originalmente publicado em três partes na página Arquivos de Erebus: https://www.facebook.com/arquivosdeerebus/posts/307162983064384]