Meu pai nunca gostou da ideia de ter uma arma em casa. O pai de Beto, meu amigo, não pensava assim, no entanto. E Beto sabia. O pai não a mostrava para ele, mas Beto entrevia, pela fresta da porta, ele polindo a arma, em algumas noites de sábado.
Tínhamos quinze anos, com diferença de poucos meses. Em casa, moravam só Beto e o pai. Era filho único, e a mãe falecera doze anos antes. Fora baleada por assaltantes que invadiram a casa deles.
Era uma noite de sábado. Estávamos na casa dele, o seu pai tinha saído. Jogávamos videogame. Chovia, e eis que a energia caiu. Beto procurou velas na cozinha, não achou. Comentou então sobre achar que o pai, por alguma razão idiota, podia ter algumas no quarto, junto a uma bíblia. Segui-o, cada um com celulares à postos. Claro que eles nos ajudavam bastante, eram inclusive melhores que vela para iluminar, mas não durariam a noite toda, em especial se não sabíamos quando a energia voltaria para carregá-los.
No quarto, ele mexia num criado-mudo enquanto eu fuçava o outro. Ao mesmo tempo em que eu gritei “Achei!” com as velas em mão, sorrindo para ele, ele me olhava sério. Tinha a .38 do pai em mãos.
Pedi para ele guardar a arma. Tinha aprendido com o meu pai a não brincar com isso. Ele falou “É, sei, é perigoso, mas só estou olhando. Nem deve estar armada. Gosto de como ela brilha com a luz do celular”. Ele estava fingindo que a apontava para o espelho, imitando uma cena de filme, quando o pai dele apareceu à porta. “Então vocês gostam de brincar de arma?”, ele nos perguntou. De terno, como ele estava, em frente à janela pela qual se via a chuva na cidade, e mais nada, ele parecia um senhor feudal, dono de suas terras e seus vassalos.
Paralisados, eu apenas segurava a vela recém-acesa na mão – tinha levado já os fósforos para o quarto – enquanto ele continuava apontado para o espelho, com os olhos fixados nos do pai, que eram gélidos. O pai se dirigiu lentamente até Beto e em um movimento firme tomou a arma de suas mãos. “Vamos brincar, já que vocês gostam disso”.
Meu desejo era de fugir, até talvez o fizesse se Beto também saísse correndo, mas ele apenas conseguiu descer as escadas, acuado. Segui-o, com o pai dele atrás de nós dois, arma em punho. Cada passo na escada de madeira ressoava por toda a casa. Na sala, ele nos mandou desligar os celulares, e disse para eu pôr a vela no centro da mesa redonda de vidro. Era a única fonte de luz. Ordenou também que nós dois nos sentássemos, depois de fecharmos cada uma das cortinas. Obedecemos, congelados.
Sem pressa, como em todos os movimentos dele, ele por fim sentou-se também, defronte dos dois. Deixou o revólver na mesa, próximo a ele. Com a mão direita revirou o bolso enquanto com a esquerda coçava o cavanhaque. Colocou duas balas na mesa, o vidro estalando com o choque de cada uma, que pareciam pesar quilos naquela noite. Uma bala aparentemente nova, a outra usada. Ele pôs a nova na arma, tomando para si cada segundo como senhor do tempo que era, sem urgência. Girou o tambor, olhando alternadamente para os olhos de cada um. “Já que gostam de brincar, que tal um joguinho de roleta russa?”.
Queria me levantar, dar um soco nele, imobilizá-lo. Ele era maior que cada um de nós, mas não maior que os dois juntos. Beto, no entanto, nada fazia nem parecia que iria fazer. Apenas olhava para baixo, começando a lacrimejar. A voz do pai dele nos dominava: “Sendo o mais velho, acho justo ser o primeiro. Não acham?”. Apontou a arma para a própria têmpora. Desejei primeiro que o disparar do gatilho fosse em vão, que houvesse apenas o barulho do martelo da arma sendo estalado. Logo em seguida, desejei que a bala saísse, sim. Odeio a mim mesmo e me castigo e penso nisso todo dia antes de dormir. Mas foi a verdade.
Só ouvimos o clique, nada mais. Quase deu para ouvir Beto suspirar, mas não tenha certeza se ele suspirou mesmo. Talvez soluçasse. As suas lágrimas desciam sem barulho.
O silêncio da sala, acompanhado pela fonte ancestral de luz que estava no centro geométrico do triângulo formado por nós três, nos fazia sentir num espaço eterno, onde mortes eram decididas assim, ao acaso, ao sabor do vento. O pai de Beto, em seguida, olhou para cada um. “Bom, agora é a vez de algum de vocês. Qual é o mais velho, para manter a regra?”. Nos entreolhamos. Eu sabia ser o mais velho. No entanto, nada disse. Beto também estava mudo, sabendo da verdade e sabendo que eu sabia da verdade. Nos olhamos, eu e ele, durante vários segundos, questionando-nos silenciosamente qual de nós seria o primeiro a abrir a boca. Estava prestes a admitir que era o próximo quando o pai de Beto bateu a mão na mesa, impaciente. “Caralho, se nenhum sabe, portanto que seja meu filho. Vamos passar de pai para filho essa brincadeira. Seguir o caminho do sangue. Justo, não acham? Filho cujo sangue é o meu. Não?” Aquele foi o único momento da noite em que houve algo no olhar opaco de Beto. Houve ódio, direcionado a mim e ao pai. Ele sabia que eu tinha permanecido calado, que deveria ser eu, mas eu fugi, fui fraco. O pai dele segurou a arma com o cano, gesticulando para Beto que segurasse a arma. Ele não levantava o braço, entretanto. O pai deu-lhe um tapa no rosto. “O quê? Não vai brincar? Está com medo?…bom. É a sua vez, pelo nosso acordo. No entanto, permanece assim. Imóvel. Patético. De você não esperava diferente. Sabe por quê?”. Beto olhou para ele como um animal olha para o leão prestes a devorar as jugulares de sua família: odioso em seu pavor, pavoroso em seu ódio. “Se você não tem coragem de puxar o gatilho, eu o faço por você.” Em um movimento de mão, o pai de Beto girou a arma. No segundo seguinte ele já a segurava corretamente, cano apontado primeiro para a têmpora e então frontalmente para a testa do filho. “De um filho que não é meu, nunca esperei atitude ou coragem. Não veio antes e não virá agora.” Ele puxou o gatilho.
Dei um salto com o estrondo e o clarão. Abaixei o rosto com os olhos fechados e estremeci quando a cabeça ensanguentada de Beto se chocou secamente com a mesa.
Despenquei no chão, rastejando debilmente para baixo da mesa. Fui capaz apenas de ouvir o som da arma sendo largada na mesa e dois braços fortes me carregando para fora, pelas pernas. Sua voz soava grave e profética. “Sabe qual era aquela outra bala? A usada? Você sabe, não, jovem? Foi a bala que matou a cadela da mãe dele, doze anos atrás, no mesmo jogo. Da mesma maneira. Estava escrito, jovem. Pus a arma na minha cabeça antes dela. Não veio a bala. Isso é predestinado, não sabe? Aquela bala tinha sido feita só para matá-la, aquela vadia. E agora, finalmente, doze anos depois de ouvir a verdade dos seus lábios, doze anos olhando para o filho ilegítimo toda noite e em cada uma delas querendo matá-lo. Outra bala igualmente divina realizou o seu propósito. Não é azar dos que se foram, meu jovem. É a mão de Deus guiando as nossas.”
Me jogou na calçada encharcada. Eu chorava, sentindo o sangue de Beto espirrado em mim, minha roupa manchada ainda pela chuva que tudo lavava. Minha última visão daquela casa foi o pai de Beto fazendo o Pai-Nosso enquanto fechava a porta, olhando para os céus e sorrindo.
conto originalmente publicado na página Arquivos de Erebus: https://www.facebook.com/arquivosdeerebus/posts/301597296954286
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