A Cadeira (2) – Uma história impessoal

Lista fortuita de verbetes correlacionados:

1 – Cadeira: objeto inventado (2) pelo homem que permite um outro homem nele se sentar (3).

2 – Invenção: objeto, peça ou sistema artificial cujo intuito é, em geral, trazer satisfação (3) para quem a usa e lucro (4) para quem a inventa. A cadeira (1) é uma invenção.

3 – Sentar: ato físico que costuma ser satisfatório. Tendo nos desabituado enquanto espécie a passar longos períodos em pé, a mera contemplação (5) da ideia de assentar nosso peso sobre a bunda ao invés de sobre os pés é, via de regra, salivante. Consequentemente, a maior parte de nós investe horas na busca, escolha e aquisição de cadeiras (1).

4 – Lucro: é uma invenção, como a cadeira. Existe quando você recebe mais dinheiro do que gasta. Há múltiplas maneiras de se fazer isso; uma parcela significativa delas inclui a apropriação do trabalho (7) de terceiros (6). Algumas poucas pessoas, após terem tido lucro o suficiente durante décadas, ou herdado lucro suficiente de antepassados (8), permitem-se uma vida de mais contemplação (5).

5 – Contemplação: ato mental que pode ser satisfatório ou não. Alguns contemplam coisas muito abstratas. Outros, coisas práticas. Uns outros ainda contemplam todo tipo de coisa. Todos, no entanto, costumam concordar que o trabalho (7) atrapalha a contemplação. Algumas pessoas que contemplam já contemplaram bastante as causas que levam à falta de tempo para contemplar. Uma das razões a que chegaram é que contemplar não costuma trazer lucro (4). Tendo contemplado essa razão, alguns contempladores passaram a desejar que mais pessoas, dentre as quais eles mesmos, tivessem antepassados (8) com maior histórico de lucro (4).

6 – Terceiros: termo de origem jurídica, é portanto das palavras mais vagas possíveis. Para poupar a paciência do leitor, deixe-se apenas entender que são todos que têm o lucro do trabalho apropriados por outrem. Trabalho sendo substituível por ideias. Ou desejos.

7 – Trabalho: é uma invenção, como a cadeira. No entanto, enquanto invenções (2) majoritariamente trazem satisfação para quem a usa, o trabalho não raro traz satisfação apenas o outro; outro este que costuma ter bons antepassados (8). O lucro pessoal (4), que é a princípio um dos intuitos do trabalho, não raro permanece apenas como esperança (9).

8 – Antepassados: os que nos pariram ou adotaram. As leis (10) determinam que somos todos iguais. Porém, na prática, contempladores já determinaram que essa igualdade se verifica apenas dentro de subgrupos que contêm pessoas de antepassados semelhantes. Para os que dentro dessa sistemática se veem prejudicados, é ofertado o trabalho (7).

9 – Esperança: talvez uma invenção, talvez não. De toda forma, é aquilo que faz alguns de nós, inclusive contempladores, nos levantarmos todas as manhãs.

10 – Leis: uma grande invenção (2), que assegura a herança dos lucros (4) de antepassados. Costumava também garantir para todos os terceiros (6) que seu trabalho (7) seria menos inumano. São feitas por pessoas sentadas (3) em cadeiras (1), mas que às vezes se levantam para gritar mais alto que outras pessoas que também costumam permanecer sentadas mas às vezes também se levantam. Alguns contempladores (5) têm esperança (9) de que tudo isso mude. Esperam, porém, sentados (3).

[conto escrito no 2º dia do curso-laboratório De Repente É Bom Ter Um Objetivo, sobre a OuLiPo, realizado na Oficina Cultural Oswald de Andrade; revisado para o blog. As referências numéricas, se arranjadas adequadamente num fluxograma, formam uma cadeira, onde (1) está no topo do encosto e (9) e (10) são os pés dianteiros]

O blog deve ficar com pouca ou nenhuma atualização durante algum tempo. Comecei a escrever um livro, e pretendo focar toda a disposição criativa nele. Boa sorte para mim.

3 comentários sobre “A Cadeira (2) – Uma história impessoal

  1. Parabéns meu Filhão pela sua indubitável inteligência no encadeamento de seu conto, com sincronização e interligação. Registro como conto maravilhoso, palpipante e que nos assegura a vontade e o gosto pela leitura. Beijão do Paizão. ” Estamos no aguardo do livro”.

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