Vidas Breves de Artistas Feios (I)

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[texto em progresso]

Uma breve introdução:

Jacques Bassot foi, admitam as versões oficiais ou não, o primeiro fotógrafo surrealista. Enterrado em 1962 numa lápide anônima em Paris, partiu desta vereda para outras ainda ressentido contra a Academia, que desde a década de 40 passara a inventariar as vanguardas europeias do século XX. Por mais diligentes que, comme il faut, os historiadores da arte tenham sido, não deixaram estes de cometer o impudor de ignorar o nome de Jacques Bassot. Seu registro não consta sequer nas notas de rodapé ou exaustivos anais dos catálogos de artistas franceses, tal como o compilado por Bresson, H. & Lindon, M. (ISBN 84723998-74). Faço aqui enquanto historiador amador a justiça necessária através de textos inéditos em língua francesa que descobri na Biblioteca Municipal de Pindorama¹. É esse o meu passatempo favorito nas razoáveis horas vagas propiciadas pelo meu trabalho diurno de taquígrafo do Fórum local.

Sem mais prolegômenos, resumo os dias de Bassot.

A (auto)descoberta:

Já um quarentão, isolado e ainda virgem, quando Breton, Buñuel e Dalí, inconsequentes em seus vinte anos, começaram a brincar de épater le bourgeois, Bassot sabia ter sido o surrealista original, tendo dado seus primeiros passos artísticos na adolescência. Sua introversão vitalícia o impedia de retratar modelos. Nem mesmo para amigos ou pais ousava mirar sua lente. Sem irmãos, só poderia ter a si mesmo como retratado. No entanto, via-se em espelhos e o que sentia era apenas repulsa: suas orelhas, não se contentando com a configuração um pouco mais comum, obstante já lamentável, de abano, protuberavam-se lateralmente como verdadeiras asas de xícara; suas sobrancelhas pareciam ter sido rabiscadas com intuito único de servir de contraponto frondoso ao seu enorme nariz; a extremidade deste, por sua vez, estendia-se a ponto de encobrir a parte superior dos lábios; os olhos mortos não faziam jus à intensa vida interior. Todo seu triste aspecto era ainda complementado com um severo caso de dermatite, que fazia suas bochechas e testa viverem com textura digna de tijolo.

Amante do belo e dos retratos, e em sua timidez, solidão e feiura incapaz de unir ambos, o jovem fotógrafo descobriu num lance do acaso o expediente que viria a adotar por décadas. Sua mãe trabalhava em uma loja de perucas e seu pai era taxidermista. Ambos costumavam trazer sobras de seus trabalhos para casa, fosse para finalizar um detalhe após o jantar ou por simples tendência ao acúmulo. Como consequência, espalhavam-se por todos os aposentos tanto perucas inacabadas, de toda cor ou sorte, como também peles de animais, prontas para o imediato preenchimento mas que por alguma razão – imperfeições no revestimento, ou mera mudança nos caprichos do cliente – não viriam jamais a ser penduradas na parede de algum banqueiro.

Numa tarde, os pais ausentes, Bassot viu na mesa da sala a peruca roxa na qual a mãe estava trabalhando. Esta fora encomendada por um rico cliente que queria presentear a amante que conhecera no carnaval de Veneza. Num lance de mão que, a ausência de testemunhas à parte, faria questão de posteriormente descrever em seus diários como “furtivo tal qual Houdini” (“As paredes têm olhos”, rabiscaria na página oposta, no mesmo diário), o jovem fotógrafo tomou posse da peruca e gentilmente a pôs sobre a cabeça. Tendo imaginado então ouvir um ruído, olhou de súbito para a esquerda. Nada nem ninguém ali havia, isso é, além do espelho do toilette das visitas. Bassot nele se viu como gostaria pela primeira vez na vida. Jamais, até então, seus olhos tinham presenciado a forma que a alma já enxergava mas a realidade insistia em desmentir. Entretanto, ainda faltava algo.

¹ Busquei estabelecer uma razão oficial para a existência de tais documentos, que basicamente consistem em correspondências e cópias mimeografadas de páginas de diários, através de entrevistas diversas com os velhos funcionários da Biblioteca. Falhei, no entanto, em discernir a causa mais plausível. Incapaz de aplicar com sucesso a Navalha de Occam, listo aqui as duas possibilidades que me foram apresentadas, excluindo desde já as alternativas absurdas, com um só proponente (tal como a que o faxineiro octogenário mencionou, relativo a tudo ter sido fruto da imaginação particularmente aguda de um jovem de dez anos, que teria escrito os papéis apenas para impressionar a heterodoxa* professora de francês pela qual era apaixonado; a multitude de caligrafias me impede de sequer considerar como verossímil essa tese, já que, como se sabe, nunca houve em Pindorama alguém inteligente o suficiente para a execução de tamanha farsa, ainda mais aos dez anos).

Os primeiros a quem indaguei falaram em um trem em 64, o último a passar pela região, que teria descarrilado justamente no centro na cidade, matando cinco pessoas e levando ao fechamento peremptório da linha. A valiosa papelada estaria na carga, junto com queijo da Provença e garrafas de Bordeaux. O destinatário de tal tesouro francês jamais tendo sido identificado, a prefeitura, para garantir a integridade física dos itens, apropriou-se dos comes e bebes, legando os papéis à Biblioteca.

Passei dois meses seguro dessa tese, tendo-a inclusive comunicado com segurança a amigos e familiares, quando soube por outras vozes que a linha de trem de Pindorama estava desativada desde 51, e que, diga-se, jamais houvera um descarrilamento no centro, de forma que a tese anterior só poderia infundada. Perguntei-lhes qual seria portanto a origem dos misteriosos papéis, que dispunham de selos ao que tudo indica genuínos e palavras na grafia anterior à reforma de 1990 da língua francesa. Haviam de ser de legítimos, na minha opinião. Os novos entrevistados, indignados de eu ter antes acreditado na tese do descarrilamento, insistiam que os papéis tinham sido obviamente adquiridos por engano. Uma ex-primeira dama, numa excursão diplomática organizada pela Prefeitura de Pindorama a Paris, na década de 70 (constariam na trupe trinta e dois funcionários, quarenta e cinco familiares e tres cães), teria descoberto num brechó do oitavo arrondissement uma legítima mala de viagem Louis Vuitton, surrada mas íntegra. O prefeito então a teria adqurido e posto a compra sob a rubrica de gastos de viagem. A ex-primeira dama nem quisera abrir a mala na loja (“Louis Vuitton se reconhece, meus queridos, não pelo LV mas pelo cheiro”, teria dito). Chegando ao hotel, descobriram o inusitado conteúdo: papéis e mais papéis, e algumas perucas. Como a mala era oficialmente de posse da prefeitura, isso incluiria o seu conteúdo. Os documentos foram, assim, trazidos para Pindorama.

Descobri ainda posteriormente que as duas facções, a do trem e a da mala, formavam uma disputa tácita nos corredores da prefeitura. Os correligionários de uma probiam-se de interagir com os da outra em âmbitos que não fossem estritamente laborais (havia duas festas de fim de ano dos funcionários; duas rifas também; e, de certa feita, quando um jovem bibliotecário passou a namorar um rapaz da outra facção, tendo posto o amor, tal qual Romeu, acima das disputas epistemológicas, os dois foram descobertos e devidamente ostracizados. Hoje vivem juntos em Jundiaí e não querem saber de trens nem de malas). Os grupos evitavam também dividir suas teorias com estranhos, por suspeição. Fui convidado a me tornar membro por ambas, tendo sido informado de que “os segredos só me tinham sido abertos pela assídua frequência à biblioteca e aparência honesta de taquígrafo, e que agora eu havia de retribuir.” Tendo recusado, sem mais, o convite para admissão tanto em uma ou como na outra, passei a ser silenciosamente hostilizado pelas duas.

* Perguntei ainda ao faxineiro em que exatamente constaria a heterodoxia da suposta professora de francês. Ele me disse que ela, além de ser linda e curvilínea, era de uma ingenuidade ímpar com os jovens alunos, em sua maioria garotos, cuja idade ia da pré-pubescência, nove ou dez anos, ao início da vida adulta. Tendo sido criada ela mesma em um lar onde o carinho andava de mãos juntas com o recato, ela não via estranheza em técnicas como pôr os garotos no colo para lerem juntos as frases nos cadernos ou em aproximar bastante o rosto da boca de seus alunos para conferir a correta execução dos fonemas. Quando ela mesma não insistia em fazê-lo, seus alunos questionavam: “Mas, ma professeure, não é melhor garantir? E se eu estiver falando errado? Não quero passar vergonha”. Sorrindo ante a disposição inigualável que cada aluno apresentava, ela lá ia, deixando o ouvido bem próximo à boca de seus alunos. Desnecessário dizer que foi homenageada em diversos poemas ruins, buquês anônimos e minutos de onanismo, sempre culminados com um gesto francês: “oh-là-là!”.

4 comentários sobre “Vidas Breves de Artistas Feios (I)

  1. Meu Filhão Lealdo de Góis Andrade, posso te considerar um jovem escritor em propulsão. A sua sensibilidade, a sua contextualização com muita inteligência e eficiência faz-nos viajar no tempo e no espaço. Beijão do Paizão. Parabéns

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