Meu nome é Marcel. As coisas eram tranquilas onde cresci. Ao menos naquela época. Foi em Guaiatu, no interior de São Paulo, nos anos 70. Conhece? Imagino que não. Rapaz…não que a cidade ainda seja tão pequena hoje, mas naqueles dias eram só quatro ruas e umas duas ou três dezenas de casas. Além disso, o obrigatório: a prefeitura, uma escola, uma velha igreja, uma delegacia, um bar, um consultório médico, um barbeiro que fazia as vezes de dentista e um campinho pra jogar bola, que o povo aproveitava para também fazer bailes. O resto era mato mesmo. Mato e bicho.
*
Meus melhores amigos eram a Juliana e o Carlinhos. Juliana não gostava de brincar de boneca com as irmãs ou as outras meninas, preferia jogar bola com a gente. A mãe não gostava muito disso, mas não chegava a segurar a filha em casa. Mal terminava o almoço, ela pedia a benção ao pai e saía para nos encontrar no terreno baldio ao lado da igreja, onde já a estaríamos esperando. De vez em quando uma das senhoras mais velhas, daquelas que viviam rezando, passava na frente do terreno ao sair da reza e ficava olhando feio pra gente do início ao fim do quarteirão, mas o padre mesmo nunca disse nada. A questão é que não conseguíamos jogar no campinho. Lá eram onde os meninos mais velhos e os adultos jogavam, e eles davam cascudos na gente se tentássemos jogar junto. Como nenhum dos três gostava de apanhar, preferíamos brincar assim, separados, do lado da igreja. A cruz fazia uma sombra que nascia bem do lado do terreno e terminava a tarde toda esticada sobre a linha do gol.
A nossa bola preferida era a que Carlinhos tinha ganhado de presente de aniversário naquele ano. Tinha se tornado o xodó da vida dele, dormindo abraçado com ela todas as noites. Eu até ficava envergonhado da minha velha bola, mas ele dizia que não era para se importar com isso. A dele, bonitona, era uma Telstar da Adidas. Tinha sido a bola oficial da Copa de 70. Seus pais tinham ido comprar na capital para o presente de dez anos de Carlinhos. Ele tinha passado o mês anterior inteirinho ouvindo cada jogo da Copa, não só do Brasil como de todas as outras seleções, inclusive chorando junto com os pais quando fomos campeões. Depois que a seleção já tinha desfilado em Brasília e todo mundo tinha seguido com a vida, ele ainda estava lá, lembrando de cada lance e da respectiva narração. A memória dele sempre foi melhor que a minha. Ficava chutando pela casa a velha bola de couro já comido que tinha herdado do irmão mais velho, quebrando pratos e portas de armário enquanto fingia ser o locutor da Bandeirantes narrando o segundo gol de Jairzinho na Thecoslováquia. O pai até escondeu a bola uma, duas, três vezes, mas Carlinho sempre achava de novo e voltava a brincar dentro de casa. Encheu tanto o saco dos pais, querendo imitar Pelé até na hora da sopa, que seu pai uma noite lhe pegou no colo e, sem elevar a voz, propôs um um trato.
“Carlinhos, meu filho. Se a gente lhe der de aniversário a tal da bola da copa, a importada, você promete que deixa a gente em paz, brincando apenas lá fora?”
“Sim! Sim, pai.” – Todos os dentes dele, de leite ou permanentes, estavam à mostra.
“Tá certo. A gente compra então. Mas no dia que eu chegar em casa e lhe encontrar brincando dentro de novo, já sabe, né? Rasgo a bola com facão e jogo fora. Importada, nacional, seja qual for.”
Isso não chegou a impedir que ele brincasse com o novo presente em casa, mas Carlinhos foi esperto ao menos para não quebrar mais nada. Logo ao ouvir que um adulto tava entrando, ele largava a bola, deitava de bruços na cama e fingia que estava estudando.
*
Uma tarde, os três para variar estávamos brincando. Eu no gol, Carlinhos e Juliana brigando pela bola. Quem roubasse e fizesse o gol em mim marcava ponto. Pode parecer engraçado que Juliana estivesse na linha, e nao eu, mas ela sempre foi melhor de jogo que eu. Uma hora Carlinhos, tendo dado um drible em Juliana, cortou para o lado e deu um bicão. Eu não tive coragem de pegar, só fechei os olhos e protegi a cabeça. Nem tinha aberto ainda os olhos quando ouvi um “cléin!” bem alto de vidro quebrando. Todo mundo prendeu a respiração. Quando finalmente abri os olhos e levantei devargazinho a cabeça, vi que Carlinhos e Juliana estavam brancos. Me virei. Um dos vitrais do fundo da igreja estavam quebrados. Os três fizeram aquele som de puxar saliva que criança faz quando sabe que ferrou tudo.
“Puta que pariu!”, soltei.
“E agora, Carlinhos? O padre vai te matar!”, Juliana disse.
“O padre? Tô preocupado é com o que meu pai vai fazer comigo, carái!” (Carlinhos evitava falar palavrão em frente a Juliana, pois o pai o tinha educado assim. A situação, no entanto, o pedia). “Porra, porra, porra, e agora? Ai, meu Deus, ai, meu Deus.”
Carlinhos paralisou. Parecia prestes a chorar quando me veio uma ideia brava e corajosa.
“Ei. Porque você não vai lá dentro, pede desculpas pelo vidro e então pede de volta a bola?”
“Tá louco? Já viu como é lá dentro? Todo escuro? Tenho medo. Não gosto de igreja.”
“É simples. Fala que seu pai vai pagar o conserto.”, eu disse.
“É, Carlinhos, fala isso. Para de chorar e age como homem.”, Juliana entrou para o coro.
Carlinhos não ouvia a gente e já ia embora, desconsolado, balançando a cabeça.
“Vai ficar sem a sua bola, então? Sem a sua Telstar?”, eu perguntei.
Carlinhos parou no meio do passo.
“Não posso ficar sem minha Telstar.”
“Não, você não pode, Carlinhos.” (Pensei em dizer também “Como eu e a Juliana vamos ficar sem a sua Telstar?”, mas não quis parecer aproveitador naquela hora.) “Vai tomar uma atitude em cima disso, então, porra?”
“Sim! Vou. Vou sim, carái. Vou voltar e falar com o padre.”
“Sim, você vai voltar e falar com o padre.”
“E você também vai, Marcel.”
“Hein?”
“Sim, você vai. Não vou levar a bronca sozinho.”
“Como assim? Você que chutou! Eu não vou.”
“Você tava no gol. A bola era sua. Não pegou porque não quis. Agora vai junto. Aliás, na verdade, acho que era para você ir sozinho. O vacilo foi seu.”
“Nem vem. Você chutou alto demais. A culpa é sua.”
“Como você sabe que altura chutei se você tava de olhos fechados?”
“…”
“Vão os dois. Eu fico aqui do lado de fora, porque não tenho nada a ver com a história.”, Juliana disse.
“Não! Vamos os três. Tamos juntos ou não, carái?”
“Não vou. Vão vocês dois. Sou menina e vou ficar do lado de fora.” Diante desse argumento inapelável, os dois abaixaram a cabeça.
“Resolvido então. Vamos os dois.”, eu disse, por fim.
“Mas, Marcel, você já viu a cara do padre!?”
“Que tem a cara dele?”
“Minha prima se casou aqui na igreja. O padre me dava medo. Parecia o vampiro, do cinema. Falava lento, sabe? E as mãos dele pareciam tremer. E tinha uns olhos…”
“Deixa de besteira. Isso é coisa de criança. Vamos lá os dois.” Falei assim pra parecer macho, mas a verdade é que tava morrendo por dentro.
“Mas foi você que chut…”
Não teve jeito. Tive que pegar no braço dele e levar. Eu sentia medo, mas, se estavam os dois juntos, o cagaço diminuía. É sempre melhor estar com os amigos nessas horas. Chegamos junto à porta pesada de madeira. Olhei para Carlinhos, que finalmente pareceu recuperar um pouco da cor do rosto. Ou isso ou eu estava com tanto medo que já não via as cores direito. Ele respirou fundo e deu três batidas na porta. Bum. Bum. Bum. Cada batida, eu me cagava mais. Ninguém respondeu. A igreja podia estar vazia. Nesse caso, não teríamos que levar bronca de ninguém naquela hora, só mais tarde em casa, quando Carlinhos falasse que perdeu a Telstar. Aí eu já não estaria mais junto. Tava respirando aliviado, até que a porta abriu. Meu coração disparou. Não parecia ter ninguém ali que a tivesse aberto.
Dei um pulo para trás quando enfim ouvimos uma voz sair lá do fundo. Parecia mesmo a de um vampiro do cinema, meio tremida.
“Foram vocês que quebraram a janela, meninos?”
*
Ouvimos os ecos da pergunta do padre virem e voltarem, até que o ar ficou parado, sem que nenhum dos dois tivesse respondido a pergunta.
“Bom…não foram vocês?”
Carlinhos e eu nos olhamos. Eu já estava prestes a abrir a boca quando o padre falou antes.
“É que…”
“Entendo. Não foram vocês. Sinto-me grato. Odeio quando as crianças não assumem seus erros e pecados.” Levantou a sobrancelha direita enquanto falava. “Posso, portanto jogar isso aqui fora, não?”
Nos revelou a mão que até então escondia por trás da batina. Sobre ela, a Telstar. Carlinhos deu um salto.
“Não, seu padre! Desculpa! Fomos nós dois.”
“Isso, seu padre. Fomos nós que chutamos. Bom, na verdade ele chutou, eu só es…”
“Como assim? A culpa é sua, eu já disse! Se você não fosse tão bich…”
“Meninos! Silêncio. Silêncio.” O semblante vampiresco do padre se alterara. Parecia mais terno. Quase familiar, como o de um avô que sorri quando recebe o neto em casa. “Venham, venham. A casa de Deus não é local para disputas, ainda mais entre crianças como vocês.”
Ele se virou e seguiu em direção ao altar. Em momento algum soltou a bola. Segurava-a consigo do lado direito. Eu e Carlinhos nos olhávamos, dando os primeiros passos naquele ambiente escuro, talvez só um pouco menos escuro agora pelo facho de luz que entrava pelo vitral quebrado. Um sabia o que o outro estava pensando: e se apenas pegássemos a bola e voltássemos correndo, sem nunca mais brincar ali no terreno ao lado? Isso passava não só pela minha como certamente pela cabeça dele também, mas nenhum dos dois teve coragem. Seguimos em frente obedientemente.
Ele puxou uma cadeira que ficava ao lado do altar e sentou-se nela com a bola no colo. Ordenou que os dois se sentassem no primeiro banco, lado a lado, em frente a ele.
“Já tinha visto várias vezes vocês brincando aqui do lado. Também tem uma menina, não? Ela não estava com vocês hoje, por acaso?”
Nenhum dos dois respondeu. Ele era até gentil, mas os dois se sentiam amedrontados demais naquele ambiente para dar qualquer pio.
“Hm…sabia que eu tenho uma grande admiração pelas atividades esportivas?” Ele falava isso não olhando para nós dois, mas para a luz que entrava pelo vitral. Aos meus olhos, aquilo era bonito. Podiam deixar a igreja daquele jeito. Ficava com mais cara de casa de gente. “Admiro bastante os esportes, crianças. Acho que isso gera adultos fortes, saudáveis para a comunidade. Pena que eu não tenho mais idade para isso. Jogava bastante com a idade de vocês, imaginam? Há há…”
“Um-hum.”, foi o máximo de que fui capaz.
“Ah, sim…era um grande jogador. Hoje, com a minha velha carne, seria um desastre. Por isso sempre apoio as crianças aqui a jogarem. O que eu não posso mais fazer, elas fazem por mim. Também por isso nunca reclamei com vocês aqui lado. Sempre soube, evidente. De vez em quando espiava vocês jogando, daqui de dentro.”
Eu e Carlinhos, ao saber disso, nos olhamos. Não sabíamos o que tirar disso.
“Os coroinhas…dou muito estímulo para eles. Sempre os presenteio com bolas. Toda vez que um deles faz dez anos, meu presente é uma bela bola de futebol. Essa aqui – naquele momento, segurou a Telstar de Carlinhos com uma das mãos, admirando-a que nem os atores no teatro adoram fazer com caveiras – esse belo modelo, também foi um presente, não? Dos seus pais, imagino?”
“Sim, seu padre.”
“Muito bem. Você é de uma boa família. Já pensaram em entrar para o grupo de coroinhas? Podemos precisar de jovens como vocês. Não é só obrigação! Vejam…todos jogam bola juntos. Saibam, a maioria é pobre, uns pobres-diabos que aparecem aqui do nada, sem família, sem conhecidos. Sei que vocês são da região, de famílias respeitadas. Seus pais vêm aqui todo domingo. Mas não se interessariam em conhecer os outros garotos?”
“Pode ser, seu padre…”, Carlinhos disse. Senti que ele falava aquilo mais por submissão, e por o padre estar com a Telstar dele, do que por vontade real. Eu pensava o mesmo. Não era preconceito com as crianças pobres. Nós é que éramos muito tímidos mesmo.
“Bom, então posso contar com vocês? As crianças ficarão muito felizes em conhecer vocês. Já tem um time completo, mas vocês podem se dividir entre vocês para umas partidas de brincadeira.”
“Queremos conhecer elas sim, seu padre.”, eu disse. Dei a melhor interpretação de que era capaz. Ele só queria que a gente fosse obediente. Falei o que ele queria ouvir. Carlinhos olhou para mim meio surpreso e então consentiu.
“Sim, seu padre. Queremos sim. Vamos jogar bolas com elas.”
“Ótimo! Jesus fica muito feliz com crianças assim. Só tem uma coisa.” Nesse momento, ele abaixou a voz e aproximou a cabeça, como se fosse nos contar uma confidência. “É segredo. Porque algumas pessoas aqui de Guaiatu podem ter preconceito com crianças de fora. Então…” Aproximou mais ainda a cabeça das nossas. “…não contem a seus pais, tudo certo?”
Ambos consentimos.
“Perfeito. Aguardo vocês à noite. É depois da missa que as crianças jogam, para não chamar a atenção da cidade. Aqui no salão restrito que fica na parte de trás.” Nesse momento, apontou para o altar, ou o que ficava além dele. “Mas se lembrem de vir escondidos. Digam que vão dormir um na casa do outro.”
Estendeu a Telstar de Carlinhos para a gente, gentilmente. Carlinhos pegou a bola sem pensar duas vezes, enquanto falávamos “Obrigado, seu padre, obrigado” sem parar e saímos correndo em direção à saída. O velho padre apenas permaneceu nos observando, sentando.
Juliana nos aguardava impaciente do lado de fora.
“Por que demoraram tanto?”
“Ah, ele encheu nosso saco com uma história aí.”
Evidente que nunca voltamos. Nem continuamos brincando ali do lado. Não sabíamos o que o padre queria, mas a gente é que não ia cair naquilo. Na impossibilidade de usar o terreno ao lado da igreja, pois não queríamos mais ser vistos pelas velhas que viviam rezando e muito menos pelo padre que tinha assumido nos observar escondidos, fomos obrigados a nos misturar com os outros que jogavam no campinho. No início, odiamos. Carlinhos queria chorar de raiva toda vez que alguma outra criança, mais pobre, olhava a sua Telstar com ar de quem ia roubá-la. No fim, nunca aconteceu nada, e passamos a gostar cada vez mais das pessoas ali. Víamos o campinho como uma extensão de casa, e os vizinhos que também brincavam ali, como uma extensão da família. Depois de dois ou três anos, até tínhamos nos esquecido da história do dia em que quebramos o vitral.
*
Eu fui fazer faculdade na capital, enquanto Carlinhos e Juliana permaneceram. Eles namoraram e depois de um tempo, uns oitos anos depois de mim, decidiram sair de Guaiatu também. Eu estava com minha própria família em São Paulo, tentando equilibrar trabalho, crianças, a tal da vida urbana, quando recebi um convite surpresa. Fazia anos que não falava com eles. Tinha perdido o contato na correria, coisas da vida. Eles tinham decidido finalmente se casar na igreja, o que nunca tinham feito, para choque dos pais. E teria que ser na velha igreja de Guaiatu, para facilitar para a família de ambos. Fazia décadas que eu não voltava lá e sequer tinha notícias. No dia anterior à festa, esposa e filhos no carro, fiz a aguardada viagem de retorno.
O casamento foi incrível, como sempre imaginei que seria. Os dois tinham sido muito apaixonados desde a adolescência e assim seguiam. Num dado momento da festa, Carlinhos me puxou prum canto, no lado de fora, com dois charutos. Me ofertou um deles e acendeu ambos com um fósforo que estava no bolso do paletó alugado. Estávamos meio bêbados já, em especial ele.
“Marcel, meu querido Marcel. Reconheceu que a igreja não é a mesma de quando éramos criança?”
Eu estava tão concentrado na festa e em ver os velhos rostos, tentando reconhecer as pessoas, que nem percebi a mudança na arquitetura. Estava toda diferente.
“Parece outra igreja.”
“E é. É o seguinte. Tá com o coração em dias? Porque vou lhe contar agora algo que você nunca vai esquecer.”
“Hum.” Permanecia com o charuto em mãos, olhando para ele, intrigado.
“Você saiu daqui faz muito tempo. E eu a Ju permanecemos um pouco mais, você sabe. Então você talvez tenha ficado sem saber de algumas coisas que nós soubemos. Pouco depois que você saiu, o padre daqui, se lembra dele? Ele faleceu.” Só então as memórias, pouco a pouco no início mas depois rapidamente, caminharam de volta à minha mente. Culminando com o dia do vitral quebrado.
“Ele morreu?!”
“Pois é. Ataque cardíaco. Normal, já tinha mais de oitenta. O padre novo enviado pela diocese decidiu que a igreja estava muito velha, caindo aos pedaços. Nunca consertaram aquele vitral, para você ver!”, disse, gargalhando.
“E aí?”
“E aí que resolveram demolir tudo. Perda total, meu irmão. Puseram o prédio abaixo. E, bom…”
Percebi a hesitação dele.
“Fala logo, porra. Estou tendo uma síncope aqui já.”
“Se lembra das tais crianças do padre? As que jogavam bola? Os coroinhas?”
“Os tais coroinhas que seu pai depois disse nunca ter ouvido falar?”
“Sim! Eu até tinha esquecido da história. Veja, você talvez não tenha sabido porque a Igreja Católica abafou na imprensa, mas quem era daqui e morava aqui não teria como não saber…”
“Caralho, se você não disser logo, Carlinhos, pode ser o dia da sua vida, pode ser o dia que for, juro que vou lhe dar um murro, seu porra.”
Ele sorriu, lembrando-se das ameaças que fazíamos um ao outro quando moleques. Puxou fumaça do charuto olhando para cima, antes de continuar.
“Pois bem, meu velho Marcel. Não é à toa que os tais coroinhas eram sempre de fora. Sem família nem conhecidos, se lembra? Ninguém jamais estranhou a ausência deles. Por isso que não tivemos nenhum parente para comunicar quando achamos as valas, ao derrubar a velha igreja.”
“Valas?”
Foi então que ele quase colou o rosto no meu, falando baixinho. Olhos nos olhos.
“Acharam onze corpos de criança debaixo da igreja, cada uma abraçando uma bola. Foi assim que elas foram enterradas. O couro das bolas ainda estava lá, quase intacto.”
Deu dois tapinhas no meu ombro e voltou para a festa. Juliana já o chamava para algumas fotos.
Enquanto terminava o charuto, permaneci observando a cruz. Ela brilhava neon com as luzes do casamento. Só fui interrompido nos devaneios quando ouvi minha esposa gritar meu nome.
“Querido, o bolo do casamento acabou de sair! Vamos comer com as crianças?”
Tentei deixar aquela história de lado, fazendo-lhe o melhor sorriso de que fui capaz e me juntando à família. Apenas quando meu olhar se perdia em algum ponto indefinido e eu voltava a pensar nas onze crianças é que um dos meus filhos me perguntava se tava tudo bem. Eu respondia que sim, desconversando, enquanto repousava o copo de cerveja na mesa para que ninguém notasse minha mão tremendo.
[conto originalmente publicado em https://www.facebook.com/arquivosdeerebus/posts/344119242702091]