Dois regurgitos

Pan-América:

E se todos entrássemos ao mesmo tempo nos Estados Unidos, como eles nos receberiam? Como lidariam com todos os aviões e barcos, trens e jegues, carros e caminhões repletos de imigrantes que chegam e não param de chegar, todos enfileirados ansiosos para saber se o céu do país é como nos filmes, se lá finalmente teremos tudo que tanto desejamos desde que vimos refletidos em tela em filmes de Hollywood, propagandas, seriados, desenhos animados, videogames, até mesmo livros, sim, até os livros nos foram roubados, apenas precisaríamos então respirar o ar do país, sentir a nova umidade, ver os corpos gordos, feios e suados, mas também os corpos lindos e fortes dos gostosos e das gostosas que nos são vendidos em todos os segundos de luz refletida que nos forçam goela dentro, que nos forçam, nos forçam, e consumimos, felizes, desejosos daquilo que nos é introjetado via sangue, esôfago, traqueia e olhos, acima de tudo nos olhos, que até mesmo esquecemos de todas as belezas que podemos consumir daqui mesmo, todas as visões radiantes que poderíamos usufruir não lhe tivesse sido colocada a lamentável tarja de exóticas, todas as nossas belezas são exóticas, não passamos de gente exótica em lugares exóticos com peles exóticas fazendo coisas exóticas, tudo como num quadro para crianças que nunca sequer se dignaram a sair de mais de algumas milhas do seu subúrbio repleto de casinhas brancas onde cresceram, subúrbios medíocres onde ainda hoje se vê Spielberg e se pensa que aquilo é bom, onde crianças ouvem rap escondido ainda achando que é uma música perigosa, mais perigosa ao menos que o rock que os seus pais ainda ouvem ao menos é, isso posso assegurar, não deixando tudo no entanto de ser uma grande idiotice, uma pasmaceira desmedida, e ainda assim, apesar de tudo, tudo, tudo, com todas essas luzes refletidas durante horas e horas e dias e horas nas nossas mentes, mentes e olhos, mentes e olhos, nada temos que não seja desejar ter nascido em outro lugar, desejar não sermos nós mesmos, desejar o fim, o vazio, a morte, tudo aquilo que nos consumiria e que enfim nos daria um sentido porque do jeito que as coisas seguem não passamos disso, terceiro-mundistas ridículos que nunca terão nascido em Pittsburgh ou poderão dirigir um Gran Torino velho obtido com moedas do próprio suor, para sempre seremos essas crianças destituídas de sonhos próprios, apenas os sonhos que aprendemos a sonhar via filmes e videogames e tudo, tudo, tudo aquilo que não é nosso, que nunca foi e que nunca será.

Rosa e laranja:

Há alguns dias, estava saindo do meu trabalho patético, material para toda uma nova carga de devaneios, abstrações, citações e expurgos, quando vi um céu rosa e laranja. Nunca tinha visto um céu dessa cor. Recordo-me de, há anos, talvez quando minhas amigas estavam me visitando em 2009, ou talvez num dia em que estava no celular com a minha ex-namorada, um céu verde, lindo, verde de uma forma que tudo recobria de verde, verde nas roupas, nos cabelos, na sarjeta, nos vértices do prédio, cinco minutos de um verde que tornou a minha memória verde até onde não era. Desse eu me lembro. Mas de um rosa e laranja, não. Parando, observando o céu, pensei se eu me lembraria da beleza dele, se eu conseguiria usar aquilo para criar algo, ou ao menos para tentar pateticamente reproduzir a beleza daquele rosa e laranja, rosa e laranja por sobre um canal fétido, uma cidade fétida, onde a alma e a mente são mortas, mas onde o rosa e o laranja por um momento a tudo me iluminaram e me permitiram sorrir e descansar o frenesi.

[versão finalmente revisada da verborreia original publicada em https://bufoes.wordpress.com/2017/05/26/devaneios-de-uma-noite-de-sexta-feira]

3 comentários sobre “Dois regurgitos

  1. Awn, adorei que você revisou esses. Mas o céu verde é por conta do daltonismo meu amor.
    Te amo.

    1. Amor. Se o daltonismo me fez ver verde, ele era portanto amarelo, o que daria uma estranheza lírica ao texto para a qual não estou ainda preparado.
      Te amo.

  2. Meu Escritor em/com Potencial Lealdinho, Parabéns pela estruturação e lógica do seu conto ”DOIS REGURGITOS” onde relata que valorizamos excessivamente tudo que é importado, em detrimento de nossos valores. bjão do Paizão

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