Meu nome é Raquel. Não posso revelar meu sobrenome, pois esse relato é real e é capaz de ele se espalhar facilmente pela Internet.
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Não entendia o poder que um perfume tem até uma tarde de quinta-feira. E não tô falando de como ele pode atrair alguém. Esse existe, claro. Mas falo de outro poder.
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Sou normal, nem muito bonita nem também tão feia. E assumo que mais pra gostosa do que bonita, eu mesma pelo menos acho isso.
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Estava nessa época no Ensino Médio, que, graças a deus, já terminei. De vez em quando uns professores me olhavam com aquela cara que todo mundo sabe que o que significa. Ele quer me comer. Escrotos. Alguns eram passáveis, mas nunca ia dar bola pra eles. Não queria ficar conhecida como a aluna putinha que dava pra professor. Já bastavam meus colegas querendo me pegar.
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Talvez por ter tomado corpo mais cedo que a maioria das outras, talvez por ser gente boa, sempre achavam que eu estava dando mole. Uma vez um colega pegou na minha bunda no corredor, saindo da aula. Não dei um tapa, empurrei mesmo na hora, sem pensar. Queria dar uns murros, mas não sabia como. Não sei lutar. Uma galera ficou rindo na hora. No final, pegamos detenção, mas não me importei. Gostei de ficar em casa vendo vídeos ao invés de ir pro colégio.
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Gosto de vários tipos de vídeos. Sou meio fanática do youtube. Mas assumo que curto, em especial, os de morte. Snuff, chamam. Descobri quando tinha uns 13. Hoje tenho 16. Já curtia nessa época ficar procurando no google pelos sites mais assustadores que era capaz de achar.
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Quando descobri que existia uma coisa chamada snuff, uma categoria de vídeo, digo, fiquei sem conseguir dormir. Isso porque já tinha passado a madrugada anterior, no notebook, vendo vídeo a noite toda. Não são tão fáceis de achar, é claro, mas, pra quem entende, como eu, rola. Meu pai trabalha com tecnologia. Me ensinou bastante sobre internet, como evitar hackers, quais emails abrir, quais emails deletar sem abrir. Acontece que também aprendi o lado errado da coisa. Paciência.
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No momento em que fui pra cama, finalmente, às seis da manhã do domingo, pra que minha mãe não me achasse acordada, não foi por medo que eu não consegui dormir. Foi por excitação. Não sexual, tava ainda começando aos poucos a aprender o que era isso. Excitação de alma mesmo. A coisa mais linda do mundo uma coisa daquelas, sabendo que não era efeito especial nem nada. Gente.
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Tinha um colega de escola. O Bruno. Bruno era gente boa. Era um pouco gato, mas não era essas coisas todas. Sei que várias meninas queriam pegar, e várias dessas ele já tinha pego. Sei lá o que todo mundo via nele de tão enlouquecedor. Talvez a confiança. Quem sabe a experiência, que era muita pra época, ou parecia ser muita.
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Sei que um dia eu e Bruno, com quem eu quase nunca falava, acabamos por ter que fazer um trabalho juntos. Aquela merda que os professores adoram de puxar nome de grupo pro trabalho no papelzinho. Porque não querem que a gente faça com quem já é muito amigo, ou pior, que a gente faça com os cdfs, os bem virjão mesmo, pra sugar eles. Eles vão querer fazer pra gente, afinal, na esperança de parecerem legais e assim a gente entender a beleza interior e querer dar uns beijos neles. Nunca funciona.
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Bruno teve a iniciativa de me chamar pra ir na casa dele. Beleza, fui. Não me arrumei muito, mas não era tão ingênua, passei um perfuminho, que tinha ganhado do meu pai tinha pouco tempo.
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Chegando lá, a casa tava vazia. Digo. Não toda vazia. Ele tava lá. Claro. Era um apartamento com cara de rico. Ele foi legal, me ofereceu água, umas frutas. Me ofertou bolo. O bolo estava bastante bom. Perguntei se era a empregada que tinha feito. Ele disse que sim. Eu comentei que gostava de fazer, também. Podia fazer algum dia pra ele, disse, sem nem pensar direito. No fim, pediu que eu ficasse à vontade, me sentisse em casa.
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A gente foi fazendo o trabalho. Era de História do Brasil, odeio. Mas não queria bombar. Ele até que era um pouco aplicado, mais que eu ao menos, nunca consegui me interessar pelos assuntos do colégio, e não tinha ideia do que iria fazer depois que terminasse o Médio. A real é que talvez ainda não tenha.
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A gente ficou no quarto dele, cada um com seu note, procurando umas coisas pra fazer o trabalho. Brasil Império. Wikipedia, uns sites que uns professores idiotas montam na internet porque acham divertido, aquela coisa. Todo mundo fazendo trabalho pega um pouco de cada lugar, mexe bastante, troca umas palavras, junta tudo e entrega.
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A gente já tava lá tinha umas três horas. Porta fechada, tal. Eu tinha colocado umas músicas, Linkin Park, é antigo, mas eu gosto, ele não conhecia, mas também gostou.
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Uma hora os dois cansaram de ficar dando ctrl+c e ctrl+v nos sites. Nisso ele perguntou se eu não queria trazer a cadeira pro lado dele, pra gente finalmente ver o texto juntos. Tranquilo. Quando sentei do lado, não tinha passado nem um minuto, ele elogiou meu perfume.
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Eu fiquei um pouco vermelha, mas gostei. Sei lá. Achei simpático. Passou mais um tempo, a gente já tava bem próximo, acabamos ficando mais perto um do outro enquanto líamos juntos e cada um queria escrever umas coisas, ele virou o rosto pra mim, e eu sabia o que ele buscava com aquilo. Dei uns segundos, e quando virei o rosto também, a gente se beijou.
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Ficamos nos beijando por um tempo. Foi bom. Parece que a experiência dele ajudava pra algo mesmo, era melhor nisso que os outros caras meio retardados que eu tinha beijado até então. Parávamos um pouco pra continuar, depois nos beijávamos mais. Seguimos assim por um tempinho, não sei se chegou a meia-hora.
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Quando a gente já praticamente não avançava mais no trabalho, e só tava se pegando, ele perguntou se eu não queria ir pra cama. Não tem ninguém em casa, ele disse.
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Eu não queria parar ainda, então aceitei. Na cama, ficamos nos beijando mais, ele começou a passar a mão nos meus peitos, os bicos tavam ficando um pouco duros. A real é que eu era virgem ainda. Tava nervosa pra caralho. Mas não tava ruim.
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Uma hora percebi que, se deixasse, o negócio ia até o final. Fiquei tensa. Não queria naquela hora, nem com ele. Nada contra. Mas só não tava desejando isso. Do nada, ele se levantou, e me deixou na cama. Perguntei o que ele tava fazendo. Ele disse que tinha ido pegar camisinha. Foi quando eu falei que não tava a fim.
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Ele perguntou porque. Eu disse que não queria, não tava querendo daquele jeito. Ele perguntou, mais alto, que de jeito então eu queria. Eu disse que não sabia, só tinha certeza que não daquele jeito, nem naquela hora. Já tava sentada na beira da cama, me vestindo.
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Ele falou que tava tranquilo, não tinha problema. Não era errado eu não querer. Eu fiquei aliviada na hora. Porém, logo depois de falar aquilo, ele trancou a porta, tirou a chave, e aumentou a música. Tava tocando Numb na hora. Disse que eu infelizmente não ia ter escolha.
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Ele subiu em cima de mim, tirou a roupa que eu tinha acabado de colocar e disse que quanto mais rápido terminasse tudo, melhor. Nem colocou camisinha. Puxou minha calcinha, deixando ela ainda nas pernas, acabou rasgando. Enfiou em mim e foi até o final. Gritei, claro. Surrei ele, também. Arranhei e mordi. Pra ver se ele parava. Não parou. Desisti. Não tinha o que fazer. Só esperei acabar.
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Voltei pra casa do jeito que tava. Não fizemos mais o trabalho depois daquilo, claro. Ao menos não naquela tarde. Quando eu tava saindo, nem tinha conseguido chorar ainda, ele falou que a gente tinha que terminar o trabalho. E que seria na quinta-feira seguinte. E que eu tinha que ir na casa dele. E que se eu não fosse, ou falasse qualquer coisa, ele iria espalhar que tinha me comido. E que se eu me comportasse direito, ele não iria contar nada pra ninguém. Não iria contar que tinha me comido.
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“Você não quer ficar conhecida como a guria que veio pro meu quarto e deu pra mim sem nem me conhecer, né? E é o que todo mundo vai saber se eu contar.”
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Também me mandou tomar a pílula do dia seguinte.
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Naquela noite, assisti muito vídeo snuff. Vi todos que já tinha visto. E então revi. Nos dias seguintes, revi de novo. E por fim mais uma vez.
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Brincadeira. Não parei aí. Vi mais. E procurei novos. E então assisti esses também mais uma vez. E outra.
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Eu não queria que ele achasse que eu não gostei do que ele tinha feito comigo. Eu gostei. Ele ia entender como. O meu modo de agradecimento seria um bolo.
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Na quinta-feira, voltei pra casa dele. Dessa vez muito mais arrumada do que antes. Coloquei minha melhor roupa de passear no shopping e levei o bolo.
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Cheguei na casa dele. Vazia como antes. Ele sorriu quando abriu a porta. Perguntou como eu tava. Se eu tinha me comportado direito. Eu disse que sim. Sorrindo também. Falei que na verdade tinha gostado de tudo. E até tinha feito bolo para ele. Ele aceitou.
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Fomos para o quarto dele. Ele disse para eu me sentir à vontade, em casa, que nem já tinha dito na outra vez. Agradeci. Ele trouxe dois pratos pra gente. Eu disse que ia lhe servir. Eu mesma cortei o bolo para ele, na cozinha, enquanto ele me esperava no quarto. Eu sabia quais partes podia servir ou não. Quais partes podia comer ou não.
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Trouxe os bolos pra gente. Ele comeu a parte dele. Eu também comi a minha. Ele adorou. Engoliu muito rápido. Perguntou se tinha mais. Se eu podia pegar mais. Eu disse que sim. Sorrindo.
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Servi mais pra ele. Ele disse que a empregada nunca tinha feito um bolo tão bom. E que eu precisava ensinar pra ela como fazer. Ele falou que ia ficar satisfeito com só mais um pedacinho, e que então não pediria mais. Perguntou se seria muito abuso eu pegar só mais aquele pra ele. Respondi que não. Sorrindo.
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Ele devorou o terceiro um pouquinho mais devagar que o segundo. O que significa que ainda foi bem rápido.
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Que bom, porque se ele mastigasse com bastante cuidado, talvez percebesse os pedaços do frasco de perfume todo quebrados que eu tinha espalhado na metade dele. Tinha feito dois bolos, na verdade. Dois meio-bolos. Um para ele e um para mim. E com a cobertura, não dava para notar que eram dois.
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Ele nem fingiu que ia fazer o trabalho. Perguntou se eu não queria relaxar um pouco antes da gente escrever mais. Descansar, sabe. Eu disse que sim. Sorrindo.
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A gente estava fazendo de novo. Não muito diferente da vez anterior. Eu não estava mais sorrindo.
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Ele nem tinha gozado ainda. Uma hora ele parou o movimento e fez uma cara estranha. Saiu de cima de mim. Disse que estava sentindo alguma coisa. Meio ruim. Eu entendo. Foram três pedaços, afinal. Bem grandes. Fui generosa com ele. Pedaços grandes. Assim como os do frasco. Esses também eram grandes. Perguntei o que é que ele estava sentindo. Levemente sorrindo.
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Ele começou a vomitar. Bolo. Com sangue. Muito sangue. Perguntou o que estava acontecendo, que caralho era aquilo. Também acho que tava chorando.
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Peguei meu celular. Fiquei filmando. Ele mal podia reagir. Só fazia vomitar. E em cada vomitada saía mais sangue. Ele olhou pra mim. Os olhos estavam vermelhos. Acho que ele queria tentar bater em mim, mas não conseguia. O chão tinha uma poça imensa, principalmente vermelha. Também tinham uns pedaços brilhantes.
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Quando eu passei a achar que ele não tinha mais o que vomitar, e ele só fazia entortar a cara dum jeito horrível, com jeito de quem queria, mas não conseguia, gritar, facilitei o trabalho dele. Afinal ele precisava de mais espaço na garganta, ela devia estar toda cortada por dentro, com os vidros que entraram. E saíram.
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Eu facilitei a vida dele. Peguei o maior estilhaço do frasco de perfume, que tinha ficado grande demais pro bolo, e enfiei na jugular dele. Foi tão fácil, achei que a pele fosse ter mais resistência. Saiu muito sangue. Tudo que ainda restava, digo. O que era bastante.
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Enquanto via, e filmava, eu fiquei chateada que respingou sangue do pescoço na câmera, tornando metade da imagem um borrão vermelho. Queria ter gravado tudo, sem obstáculos. Mas hoje eu gosto. Deu um toque quase mágico.
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Não houve espectadores nem ninguém pra incomodar. Afinal ele tinha se certificado de que a casa estaria bem vazia naquela quinta-feira.
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Tomei banho na suíte dele, e troquei a roupa pela muda que tinha levado. Deixei a antiga num lixo. Fora do condomínio, claro. Em outro bairro, aliás.
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No dia seguinte, na escola, ninguém estranhou. Nem vieram a suspeitar de mim. Parece que ele não chegou a contar mesmo de mim pra ninguém. Nem eu tinha dito pra ninguém que tinha ido na casa dele, nenhuma das vezes. No final, entreguei o trabalho sozinha. Só a parte que a gente já tinha feito antes. Não queria me envolver mais com aquilo. Deu pra tirar um 6.
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Os pais demoraram a fazer a informação da morte chegar ao colégio. Quando soubemos, todo mundo ficou em choque. Já tinha se passado um mês, tava difícil manter a mentira de que era doença. Teve até missa na quadra, e homenagem do diretor. Ninguém jamais suspeitou de mim, parece.
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Vi umas meninas chorando na missa, e depois também no enterro. Mas também tinham umas sorrindo.
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Com o tempo abandonei o hábito de ver vídeo snuff. Quando quero relaxar, faço outra coisa. Saio. Vejo filme. Fumo maconha.Tudo junto, quando quero desestressar mesmo.
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Mas nunca deletei o vídeo que eu mesma gravei. Filho único esse snuff meu. Toda quinta-feira à noite, sozinha no quarto, assisto. Enquanto passo em mim mesma um perfume da mesma marca que usava naqueles dias. E sorrio. Toda quinta-feira.
Parabéns, meu contista.
Acho seus textos, leves, tranquilos, fáceis de leitura e de entendimento.
Merecem elogios a sua sutileza e contextualização.
Beijão do Paizão
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Legal a forma como você estrutura os contos……………gera uma boa fruição……….parabéns…………..
Obrigado!
mano. fui parar pra ler hoje, só. que texto do caralho.
Porra, Mel. Fico emocionado, sem brincadeira. Obrigado, pra caralho.