A Saga de Sal – Parte 1

Postarei, em múltiplas partes cuja frequência não será de modo algum previsível, a história escrita a 4 mãos pelo meu amigo Paulo H. Scatena e por mim, respectivamente denotados por P. e L., em trechos revezados e gradualmente crescentes. Tudo foi escrito pelo banco de praça do século XXI, o WhatsApp.
A aparição de aspectos textuais tais como concordância gramatical e coerência e coesão narrativas será pontual e acidental.
P. Entra a música tema de thriller psicológico com notas de quinceañera.
L. Do teto caem lhamas, que prontamente cospem em todos os humanos presentes, estejam dançando ou sentados ou apenas confusos. Alguém se aproxima então de uma das lhamas e percebe que na verdade são apenas piñatas.
P. Os uivos distantes preenchem o silêncio salgado. O primeiro que se dá conta do real valor nutritivo do fluido em sua face não diz nada. Seu rosto acende em rubor, se confundindo com a luz purpúrea do poente que tinge em vermelho as piñatas.
He spat.
L. Com as bochechas mais e mais vermelhas, esse jovem, Salvatore Innocenti Varonski, também conhecido em certos círculos de truqueiros de Praga como Sal I. Va., necessita ingerir cada gota daquele cuspe. Corre à sua direita, rumo a uma moça de traços eslavos mas virginais cuja cabeça brilha em baba, e passa a língua em cada vincozinho do rosto. Não, ela não protesta muito. Sim, está explicado o estupor de lembrança em que Salvatore foi jogado.
O sabor é igual ao do leite de sua mãe.
P. “Mãe, ainda tenho fome”. O homem a que ele chamava de mãe – mera convenção social: decidiram ele e o marido pelos rótulos no cara-ou-coroa – suspira. “Estou esgotado, filho. Peça para seu pai.”
“Mas o papai é azedo!”, a criança retruca com amargor. A mãe lhe desce um tapa na face. Quando desperta de sua memória, Sal vê a moça à sua frente se preparando para o segundo tapa. Protesto atrasado, pensa. Tipicamente eslavo.
L. “Espera!”. Sal retém com algum esforço o pulso direito da moça, que já estava a um palmo de seu rosto. Ela então com praticidade eslava se limita a desferir-lhe um belo e ágil bofete com a canhota, que era tão capaz quanto a destra. Desnorteado, Sal grunhe enquanto massageia a bochecha, “Moça, você é boxeadora?” “Non. Prrrostituta. Eslovaca, mas pode chamar só de vaca. Saco a brrrocha tanto com a dirrreita como a esquerrrda, e até ao mesmo tempo, se pagarrrem bem. Só estou puta, perrrdão o trrrocadilho, porrrque nunca rrrecebi esse tipo de leite no rrrosto sem ganharrr para isso”.
P. Sal olha ao redor, o estado catatônico sendo substituído por comedido embaraço. Os que dançavam tentam sair da pista sem escorregar, cabisbaixos. “E se você quiserrrr segurrrarrr meu pulso porrrr mais tempo, é melhorrrr me comprar a janta”. A voz da prostituta o afasta do devaneio. Sal volta-se rápido, sua mente já ocupada com seus próximos problemas. “Não estou mais com fome, lamento”, se pega dizendo.
L. Num canto do salão, um homem baixo de sombreiro mexicano e outro alto de bigode e chapéu-coco conversam energicamente, distraídos quanto ao entorno. Os dois chamam a atenção de Sal. “É uma festa à fantasia?”, ele pensa, enquanto julga reconhecer suas silhuetas. Aproxima-se pouco a pouco dos dois, cruzando em idas e vindas a pista com passos de dança que aprendeu em um canal do YouTube chamado Shake Ya Hip, Hipster. “Talvez seja uma festa à fantasia. Mas porque ninguém me avisou? E qual seria o tema?”. Ao esbarrar numa senhora de plumas na cabeça, derrubando seu ponche, e recebendo em consequência um olhar-de-desejo-de-morte-lenta-e-dolorosa, Sal nota enfim estar perto o suficiente para reconhecer a discreta tatuagem de cuco na mão do homem de chapéu-coco. O símbolo da máfia dos truqueiros de Praga. A máfia a que Sal pertence. E que há doze horas decidira trair.
P. À sua retaguarda, Sal ouve palmas enquanto a multidão abre espaço para um negro velho trajado de flautista peruano, saindo entre sinceros sorrisos. A dupla ao canto nem se volta ao movimento, felizmente. Sal aproveita a abertura e retro-desliza em um bem treinado jupyter walk, na batida crescente do rasquefunk que inunda o local, buscando eclipsar sua presença entre as cores e sons que dançam no salão. No seu caminho, porém, se põe uma moça, de cílios ruivos e corpo oculto por uma burca vermelha tremulante. Ela veste um desafiante e sorriso, deslizando para um espacate e por definitivo impedindo qualquer avanço de seu alvo. Sal hesita, mal equilibrado no meio de um pas-de-bourrée interrompido. O público converge em um círculo ao redor dos dois, interessados no latente dance-off. Sal, o olhar ainda fixo, vê os mafiosos começarem a se voltar para o burburinho. Sal sua. Saca de sua camisa o velho baralho e faz um leque, estendido para a infame dupla, deixando à vista apenas seu anônimo punho. Seu outro braço floreia sinuoso rumo à ruiva, um aceite de desafio. Ela olha para sua mão. Ele olha para sua mão. “Algo parece estranho”, ele pensa, mas o bass drop se aproxima e ele precisa se focar. Finalmente ele repara. O que ele não viu na sua mão livre foi a tatuagem de cuco, que ele já se acostumara a ver todas as manhãs. Pelo espelho. “Merda”.
L. Sinapses a mil, tudo poderia acontecer agora. Eles reconheceriam seu cuco? Jamais desacompanhado da imaginação um tanto soberba que ao longo da vida lhe trouxera tanto felicidade quanto desespero – sabe o que é a sua namorada atrasar duas horas para um encontro devido a uma diarreia explosiva e você estar convicto de que naquele momento ela, ao invés de incinerar as pregas numa privada, estaria na verdade incinerando não só as pregas como também a cama num ménage à trois com o vizinho e um cocker spaniel? -, Sal passa a ponderar os possíveis porvires. Cenário 1. A dupla estranha a companhia desavisada de um colega truqueiro, sente o faro de traição, e foge por precaução. Cenário 2. A dupla estranha a companhia desavisada de um colega truqueiro, sente o faro de traição, espanca Sal, leva-o para um beco, e o mata por precaução. Cenário 3. A dupla estranha a companhia desavisada de um colega truqueiro, sente o faro de traição, e o mata ali mesmo, não sem antes deixar de por precaução o espancar um pouco, só que dessa vez sem a necessidade do beco. No entanto, macacos me mordam, o destino prega uma pequena peça ao pessimista perene que é Sal. Enquanto a dupla se aproxima, nosso protagonista se põe numa posição de combate que poderia ser interpretada como um passo de techno (Manchester Shuffle, de 1987) – a ruiva burcada está imitando seu passo ou é impressão minha? – e se prepara para dar um pisão no peito do rival mais baixo. A coxa da perna de apoio já se encontra retesada quando o homem alto da dupla avança, abrindo um simpático sorriso enquanto estica a mão para cumprimentá-lo e, num sotaque mineiro que seria reconhecível em qualquer urbe do mundo, pergunta “Ih, rapaz, qué que cê tá fazenu nesse trem aqui de festa bôa, sô?”

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