Ninhada

Larissa sabia que o dia tinha chegado quando o último gato sumiu da cidade. Fazia meses que recebia e entendia os sinais: o cheiro de sálvia que subia dos bueiros; o gosto de ferro nas frutas; o eclipse solar e o lunar no mesmo mês; os ratos que tomaram conta de tudo. Ela se sentou para escrever, do jeito que gostava, à mão. Sabia que seus netos diziam que ninguém mais escrevia assim. Começou pelos nomes deles. Picotou as folhas e jogou no chão. Logo os ratos vieram comer os pedaços. Pensou na sua escola, que não devia existir mais. As páginas terminaram antes dos nomes e ela se levantou, deixando os ratos que passeavam pela mesa despedaçarem as folhas. Ainda com a caneta, se agachou no canto da sala, onde a parede era mais branca. Escrever lhe atiçava a memória, e a memória, o rancor. Se lembrou da sua filha, que agora a chamava de senil. Desenhou a árvore genealógica, se apressando para terminar cada galho enquanto os ratos mastigavam o reboco do anterior. Alguns passaram a morder a barra de sua roupa. Mais nomes: vários vizinhos, todos os amantes. O caixa que tinha rido ao ver seus dentes. Seu vestido era um trapo, e as patas sobre a sua pele deixaram de incomodar. Larissa se recordou do nome de cada um, e escreveu o da sua filha com linhas do teto ao chão, para caber todas as desfeitas. Às dez, a lua voltou a sumir do céu. Às onze, a energia acabou, e Larissa entendeu que num mundo sem luz não havia nudez. Às onze e quarenta e cinco, os ratos começaram a lhe roer, começando pelos pés. Deixou um único nome para o fim, que ela sussurrou ao animal que comeu a sua língua.

[Texto com o tema Fim do mundo, 1500 toques, produzido para a oficina literária Nocaute Iceberg, de Joca Terron]

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