Por conta das velhas luzes incandescentes, a sala brilhava com um tom sépia. O homem parou em frente ao aparador e olhou cada uma das fotos, segurando-as próximas ao rosto. Cobriu a face com as mãos, mesmo estando sozinho. Após alguns minutos, se dirigiu ao banheiro. Ficou se vendo no espelho: olhos vermelhos, olheiras roxas. Entrou em um dos quartos. O local estava todo arrumado, com exceção dos lençóis. Abriu uma das gavetas da cômoda. Meias e calcinhas. Abriu então outra, e mais outra, até que achou o que buscava. Pôs sobre a cama um conjunto de blusa e pantalona marrons. Deitou-se ao lado e ficou acariciando os tecidos, suavemente, de olhos fechados. Então se levantou e, com cuidado, vestiu o cabideiro, cuja altura chegava ao seu pescoço, com aquelas roupas de mulher. Levou o cabideiro à sala. Sem precisar procurar, colocou um bolero no aparelho de som.
Deu um passo à frente enquanto inclinava o cabideiro para trás. Assim que a música subiu de volume, passou a dar voltas pela sala, segurando o cabideiro enquanto girava com passadas firmes. A cada canção ele dava voltas mais longas e mais rápidas, até que, com seu corpo tremendo e se chocando com os móveis, se descolou do compasso da música. Jogou o cabideiro com força no chão. Se ajoelhou ao lado e rezou o Pai Nosso. Voltou a se deitar ao lado das roupas, olhando para elas enquanto cantarolava baixinho um dos últimos boleros do disco. Saiu do apartamento deixando as luzes acesas.
No aparador, as fotos iam do preto-e-branco ao feio colorido recente. Via-se nas primeiras uma família: pai, mãe e duas crianças, todos com olheiras, inclusive os menores. A mãe sumiu ainda nas fotos em preto-e-branco. O rosto do pai se cobriu de cansaço, até que também desapareceu. O casal de filhos dominava o restante das fotos, da adolescência à vida adulta. Numa das mais recentes, se viam os dois abraçados, com uma montanha nevada ao fundo. Ambos tinham o mesmo nariz e as mesmas olheiras. O homem sorria. A mulher usava roupas marrons.
—
[Texto com o tema Conto Imagético, 2000 toques, produzido para a oficina literária Nocaute Iceberg, de Joca Terron]
fantástico!