Já sonhou em se encontrar com o seu escritor favorito? Eu já. Era o escritor de suspense que mais amava, o responsável por minhas noites mal dormidas, consumido por suas histórias. Havia devorado todos seus romances e contos. Cada inovação sua era seguida de mil plágios de autores menores. Cada enredo original era prontamente copiado em mil rascunhos mal feitos – e ainda assim, publicados! – onde suas cenas e soluções tão elegantes e macabras eram distorcidas em clichês, deus, quantos clichês. Há décadas que era o nosso rei, e apesar disso, ou, quem sabe, justamente por isso, era recluso como um leproso medieval. Nunca respondia emails de fãs. Nunca aparecia para autógrafos e feiras, mesmo as várias feitas em sua homenagem. Tudo que tínhamos era a mísera foto em seu livro; era o que nos permitia ao menos conhecer seu rosto – um rosto tão banal e ainda assim único para nós, seus devotos – e saber como ao longo das obras – um best-seller atrás do outro – seu cabelo rareava e seus olhos se demonstravam mais e mais opacos.
Qual não foi a nossa surpresa quando os cem membros mais antigos do fã-clube oficial, e apenas eles, receberam em seus emails um convite para o lançamento de sua mais inédita obra, com a presença de ninguém menos que, sim, o autor, em carne, osso e imaginação doente. Foi o suficiente para, nas três semanas que separaram o recebimento do convite e o evento em si, meu coração bater febril em cada noite, justamente quando mais queria apenas dormir para que o tempo logo passasse.
Na noite do lançamento, nos reunimos num teatro. Ninguém havia na recepção; apenas havíamos entrado e preenchido os lugares. O palco, além da cortina vermelha fechada, continha somente um par de velas. O convite anunciava o evento para as vinte e três horas; qualquer outra informação nos permanecia oculta. Não sabíamos o nome do livro, e se teríamos que pagar por ele ou pelo evento. Nos fora exigida somente a presença.
Às vinte e três em ponto, as luzes artificiais se apagaram. Naquele momento, a débil iluminação das velas mal era suficiente para enxergar a cor da cortina. Nossos corações coletivamente batiam numa sinfonia desordenada. Sem aviso ou preparação, uma voz começa a nos falar do sistema de som:
“Bem-vindos, meus queridos leitores. Meus amigos, meus irmãos. Boa noite.”
Todos se entreolhavam, buscando ser gentis, inclusive respondendo o boa noite, até mesmo tentando descobrir se o autor – conhecíamos seu rosto, afinal – não já se escondia no meio de nós. Seria um truque perfeitamente razoável. Não parecia, no entanto, ser o caso.
“Imagino que estejam ansiosos para o lançamento que lhes aguarda hoje. Bom, antes de tudo, agradeço pelas décadas de leituras fiéis. A vocês tudo devo. Acreditem em mim. Tudo.
“Talvez os mais atenciosos tenham percebido, todavia, como minha saúde se deteriorou ao longo dos anos. Esse fato não pôde escapar às imagens, devem saber. Jamais quis retocar minhas fotografias…assim, não seria difícil perceber como me tornei mais e mais emaciado. Cadavérico, até, diria. Bom. Apropriado para um autor do meu gênero, não?
“A verdade é que o processo de criar tantas histórias me consumiu. Alimentar vocês, meus donos. SIM, vocês são meus donos, acreditem, não passo de um escravo cuja obrigação moral é parir, PARIR, enredo atrás de enredo para vos satisfazer. É tudo que esperam de mim. Como tive que aguentar ligações e mensagens e cartas pedindo mais histórias, solicitando continuações, exigindo finais! Tanta expectativa, justamente de quem apenas deveria me deixar em paz, agradecer e seguir a vida, somente isso. Tudo que esperei de vocês foi respeito e silêncio. Nunca houve, é claro. Antes que duvidem…li cada pedido que foi me enviado, seja por qual meio tenha sido. Não queria, nem mesmo devia, mas não resisti…”
À essa altura, algumas reclamações em voz alta já partiam da plateia; alguns se levantavam, enquanto outros, elevando a voz, denunciavam ser tudo uma farsa. Os mais frágeis choravam, tristes de terem ofendido seu ídolo.
“Bom, depois de hoje não haverá mais cobrança. Presentar-lhes-ei com a minha obra-prima. E assim, finalmente, terei paz. Esse presente é a única forma como posso lhes agradecer, depois de tantos anos de relação íntima.
“Ah, sim. Um último adendo necessário. Estou gravando essa mensagem às oito da noite. Quando ela terminar de ser tocada nos alto-falantes, será pouco mais de onze, creio…espero que gostem da obra que agora, sem mais espera, lhes dou.”
As cortinas se abriram. Nada vimos, no breu. Podem então ter se passado trinta ou trezentos segundos de escuridão. Minha ansiedade estava a tal ponto que eu não media mais a passagem do tempo. Subitamente, todos os refletores iluminaram o mesmo ponto no palco. De início nada consegui enxergar, ofuscado.
Aos poucos, minha visão se acostumou.
Numa poltrona preta, isolada, estava sentado o nosso escritor. Inconfundível. Sua boca estava aberta. Quando finalmente consegui abrir os olhos por completo, entendi o que nos aguardava. No corpo do autor, em toda a sua glória solitária no palco, estavam lápis enfiados em cada um de seus olhos e uma caneta tinteiro atravessava de lado a lado a garganta. A tinta se misturava ao seu sangue coagulado no peito. Todos os seus dentes haviam sido removidos.
Abafada por gritos e surtos da plateia, emanava dos altos falantes uma gargalhada.
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conto originalmente publicado na página Arquivos de Erebus: https://www.facebook.com/arquivosdeerebus/posts/309109252869757