Entrevistado Nº 1:
João Ferreira,
28 anos, graduado em Cinema e Audiovisual pela UFBA, trabalha como técnico judiciário do TJDFT.
15 de setembro de 2016,
Brasília-DF.
Entrevista realizada numa mesa para quatro pessoas no calçada do restaurante O Gato Calado, Asa Norte.
12h05.
[João usa camisa social preta listrada, mangas dobradas até os cotovelos. Fala baixo, com segurança, revezando o olhar entre o interlocutor e a rua, não de todo desconfiado. Acende um cigarro durante a entrevista. Provavelmente é gay ou bissexual.]
– (…)
– Júlia Nigri? Ah, sim. Conheço. Acho que passou dois meses e pouco na república de uma amiga em comum. No sofá mesmo. Nunca entendi bem o que ela veio fazer na cidade.
– (…)
– Lembro que ela gostava de catuaba, disse até que bebia antes de virar moda, não sei se era verdade, mas falava como se fosse. Lembro também que em mais de uma noite, todo mundo de bobeira sentado no chão da sala dessa tal república, ela sugeriu de a gente sair pra procurar maconha aqui na Asa Norte. Isso porque a minha amiga, sabe, a da república, não tinha erva em casa, nem sabia direito onde procurar. Os outros amigos também eram meio lentos com esse tipo de conhecimento.
– (…)
– Quê?
– (…)
– Ah, sim. Ela arranjou. Foi engraçada a história. Saca só. Júlia tava a fim de maconha, né? Dizia que um pouco ajudava a conversar e a escrever. Abria a cabeça, fazia fluir a vida interior, todo esse papo new age dos anos 60 que na nossa age, tudo indica, permanece new. Não que eu ache, pelo pouco que a conheci, que ela acreditasse nisso tudo, ao menos num nível profundo, mas era o tipo de coisa que ela adorava falar. Ironicamente, penso.
– (…)
– Uma noite, tava todo mundo bem maconhado, Júlia tinha afinal dado umas voltas sozinha e arranjado um pouco, ela começou a perguntar do signo de cada um presente, e tinha essa menina, foi a única vez em que a vi na vida, não era do nosso grupo, ela era leão com aquário, ou quem sabe era câncer com aquário? Não, acho que era leão mesmo…sei que foi Júlia quem trouxe essa história de signos para a conversa, olha que ninguém até então tinha falado nada de astrologia, o papo antes eram aquelas discussões intermináveis sobre Temer e todos concordavam que tinha sido golpe e que ele devia sair, aliás, ser preso, mas ninguém parecia ser capaz de concordar quanto a quem iria entrar no lugar, e vira-e-mexe rolava até briga por isso, de repente Júlia, essa garota de fora, perguntou dos signos. Todos ficaram surpresos, ninguém estava esperando aquele tema, vai, leviano. Ao menos uns viam desse modo, outros encaravam com grande gravidade. Nessa desavença entre ser algo sério ou não cada um foi respondendo à sua maneira, sem saber como reagir àquela pessoa que mal conhecia alguém ali mas tinha sido capaz de interromper aquela conversa com algo tão despropositado. O pior é que a própria Júlia nem parecia prestar atenção às respostas, eu até imaginei que ela estivesse atenta porém seu rosto permanecia abaixado, apenas mirava os dedões dos próprios pés enquanto cada um, a depender do caso, ou relatava prontamente seu signo e ascendente ou precisava fazer um esforço para se lembrar. Cada alma ali expondo ao mundo a sua combinação astrológica de bom ou mau grado e ela sempre de cabeça baixa. Só quando a menina que nunca voltei a ver falou do seu maldito leão com aquário foi que a Júlia esboçou uma reação, não, minto, estou sendo eufemístico, ela não apenas finalmente levantou a cabeça como se ergueu num salto, lembro a você que todos estavam lombrados e portanto quase imóveis, ela passou a dar voltas pela sala, depois se sentou em frente à menina de leão e começou a perguntar, não, a exigir o resto do seu mapa astral. A menina de leão, tendo por acaso essa curiosidade latente e nunca manifestada quanto ao que o universo lhe guardava, limitou-se a assumir que não sabia, mas podia lhe dar sua data e local de nascimento, caso ajudasse. Júlia nada disse, só aproximou mais a cabeça. A menina falou baixinho, ninguém mais além das duas conseguiu ouvir, e Júlia num transe digno de filme sueco de imediato relatou cada lua e planeta que regia a vida da menina de leão, mas não só, discorreu ainda quanto a cada aspecto da personalidade da moça, tudo que ela guardou para si, traços ocultos que ela não tinha disposição ou coragem para lembrar durante o dia-a-dia. Júlia tudo ali expôs, nem pareceu lhe vir à cabeça que aquilo era uma violação de intimidade, estava ocupada demais vomitando para o mundo a arquitetura psicoastrológica da menina, e esse desnudar foi tão imprevisto que ninguém mais se lembrava de Temer ou seus possíveis sucessores. A sala com o cheiro doce da maconha tinha se tornado palco e peça onde Júlia se apresentava e no seu monólogo foi capaz de acertar qual dos pais da menina de leão tinha fugido sem avisar à família, e veja que era a mãe, o pai seria uma possibilidade de chute, todos sabemos, mais que razoável. A improbabilidade daquelas afirmações certeiras não fugia a mim ou a alguns outros ainda céticos. Não ficando só nisso, ela ainda apontou qual morte de animal de estimação da menina mais a tinha traumatizado até agora, com qual profissão ela tinha sonhado na adolescência e qual exercia na prática, narrou até o momento em que seu tio, irmão da mãe foragida, a bolinou na cozinha numa manhã de domingo, admito que esse não é o tipo de informação que se acha em qualquer fuçada de rede social. Não sabíamos de onde Júlia tirava tudo aquilo, não podia ser só brisa de quem fumou. Nossos queixos enfim caíram quando a menina de leão já em prantos admitiu que sim, tinha sido abusada, e não só pelo tio, mas também pela irmã mais velha, uma vez cada. A menina de leão perguntou para Júlia desde quando ela fazia aquilo e como era possível, se nem mesmo ela se lembrava, se nenhum dos namorados ou melhores amigas souberam, que dom era aquele e, finalmente saindo do transe, Júlia apenas olhou em volta encabulada, admitindo que nunca tinha agido daquele jeito, nem sequer se interessava em astrologia, mas que puta boa maconha era aquela que por acaso tinha arranjado. Finalmente notando o desamparo da menina e o clima geral da sala, ela ficou por um tempo em silêncio e então disse sorrindo que tudo ia ficar bem agora, os astros tinham lhe confessado no ouvido.
– (…)
– Não soubemos bem como agir. Acho que cada um voltou para a sua casa sem falar muito. Uns dois dias depois soubemos que Júlia tinha ido para o Rio.
– (…)
– Ah, a história de como ela arranjou maconha?
– (…)
– Ih, nem lembro mais. Desculpa. Também já deu meu horário de almoço. Na próxima conto, juro. Quando lembrar de mais informações, como faço para lhe achar mesmo?
– (…)
– Entendo. Boa sorte na busca.
Entrevistado Nº 2:
Roberta Scherer,
25 anos, graduanda em Fisioterapia na Estácio, trabalha durante as manhãs como caixa numa loja de ferragens da Tijuca.
12 de novembro de 2016,
Rio de Janeiro-RJ.
Entrevista realizada nas cadeiras de balcão do Bar da Míriam, na Praça Sáenz Peña.
20h23.
[Roberta apareceu com os cabelos cacheados presos, vestindo blusa de renda folgada e short jeans. Só um dos ventiladores do Bar da Míriam funcionava, de forma que ela enxugava o suor na testa com um guardanapo ou a própria tulipa de chopp. Quando eu voltava do banheiro, já de saída do local, flagrei-a anotando seu número no telefone do garçom, com quem trocou olhares durante a entrevista.]
– (…)
– A Júlia? Gente, tô até hoje descrente com aquela menina.
– (…)
– Tem umas três semanas, nós fomos na praia de Copa de tarde e depois saímos na Lapa. Fomos tomar umas num bar, o Tom’s, onde vou desde que tenho dezesseis. Sentamos numa daquelas mesas de calçada, uma meio longe da entrada mas que o garçom amigo sempre tá de olho, e já fomos pedindo uns litrões que o grupo era grande. Logo começou aquela gritaria, um querendo tirar onda com o outro, eu mesmo tava rindo pra caralho, só quando fui encher de novo os copos que vi que Júlia nem tinha encostado no dela. Eu não conhecia ela direito, foi minha colega de trabalho que trouxe pra praia. Elas se descobriram pela internet, não sei se por site ou aplicativo, minha colega até achou no início que era pegação que a outra queria e preferiu ir dizendo logo que não era lésbica, mas Júlia respondeu com uma mensagem rindo e dizendo também não era o negócio dela, só queria conhecer gente para sair na cidade. Estava num hostel e não tinha amigos no Rio, e quem é que vai dizer que ela não tem direito de fazer amizade assim? Sei que ela tava ali calada, na verdade mais do que calada, não se mexia, tava é petrificada, é assim que dizem, né?, só com o cigarro já quase todo queimado na boca, cheio de cinza no copo. Cheguei a pensar que ela tinha infartado. Gritei Caralho, cê tá bem!?, ela só virou o rosto e piscou os dois olhinhos para mim, respondendo Claro, porque não?, o que muito me estranhou, afinal alguém que está bem não costuma deixar cair cinzas na sua cerveja, ainda mais se estiver gelada. Antes de eu questionar se ela não queria talvez beber outra coisa, a verdade é que ninguém tinha perguntado se era cerveja mesmo que ela ia beber, e conheço gente de todo tipo, inclusive gente que não gosta de cerveja, ela se levantou sem dizer nada e entrou na parte de dentro do bar, onde o samba tava tocando e tinha uma multidão.
– (…)
– Não, não podia ser só para ir ao banheiro, pois fazia mais de uma hora que tinha ido, e, por mais que estivesse cheio, ninguém tinha como demorar tanto. Comecei a achar que ela tava passando mal. A minha colega de trabalho, a que trouxe ela, nem se atentou, um cara bonitinho tinha chamado ela para dançar e eles já tavam no love.
– (…)
– Não achei que o mesmo pudesse ter acontecido com a Júlia, ela não tinha cara de quem ia dar bola pra alguém ali, fosse quem fosse. Também não parecia saber dançar. Mas sei que tudo isso podia ser só preconceito meu.
– (…)
– Sim, enfim entrei. Ninguém na nossa mesa tinha mesmo comentado nada, nem deviam ter percebido a ausência dela, a maior parte da gente é assim, se distraem com tudo, menos com o que mais importa. Já eu estava ficando preocupada de verdade. Fui atrás. E o que descobri? VI de longe ela toda tranquila na conversa mais animada do mundo. A mesma pessoa que mal tinha aberto o bico de tarde, quando a gente foi na praia, tava toda palavrosa na mesa do senhor cego que me disseram que bebe lá há quarenta anos.
– (…)
– Sabe essas pessoas que sempre estão por tradição na mesma mesa, bebendo sozinhas? Todo bar tem o seu bêbado de honra. Aquele que gosta do cheiro do balcão mais que da própria casa e dos garçons mais que da própria família. E que antes do meio-dia já tá com a cara inchada mas só volta para casa tarde da noite, breaco. Era com o bêbado de honra do Tom’s que Júlia tava sentada, alegre, gesticulando. E o bêbado de lá ainda por cima é cego. Deve gostar da música. Além da cachaça, é claro.
– (…)
– Ela não devia ter notado. De vez em quando a gente conversa horas com alguém e nem percebe as coisas mais óbvias. A mesa deles era afastada pro canto, onde fazia menos barulho. Eu tinha que chegar mais perto. Tava muito cheio o bar, quando é barato é quase sempre assim. Tentava me aproximar mas não conseguia. Não tinha percebido, mas logo atrás de mim vieram também uns quatro amigos que tavam lá fora fumando. Fizeram um círculo sambando em minha volta pra tirar onda comigo, já sabendo que sou meio azeda com essas coisas. Pra piorar, um deles me tirou para dançar, só nós dois, ele tava ficando meio bêbado e ficou me xavecando. Nem adiantou, pois ele até abria a boca mas as palavras não chegavam para mim, talvez eu até ouvisse mas não escutava. Tudo que prestava atenção era como a alguns metros de mim Júlia descrevia toda uma cena para o cego bêbado, ela se levantava, se abaixava, dava piruetas sem sair da cadeira, e com a mão fazia animais que corriam atrás de meninas formadas pela outra mão, o animal parecia ser um cachorro no início mas talvez fosse só minha imaginação forçando, do jeito que ela fazia, junto com a expressão no seu rosto, tudo apontava para um gato, um grande gato, quem sabe um tigre, que pulava em cima da menina formada na outra mão, Júlia abria e fechava a boca enquanto as mãos subiam e desciam e se entrelaçavam, o cego bêbado com seus olhos inteirinhos brancos parecia tudo ver, não chegava mesmo a piscar, juro por Iansã que para mim ele enxergava, ele via cada gesto que Júlia fazia, até o copo que sempre subia e descia em sua boca estava agora ancorado naquela mesa, só as mãos de Júlia se mexiam, e quando meu amigo disse que eu não parecia ter prestado atenção em nada do que ele disse, eu respondi que não mesmo, não tinha escutado um só som, consegui me livrar e fui até a mesa onde Júlia tava, chegando a tempo apenas de ouvir o cego bêbado pronunciar solene A ti, minha jovem, um brinde. Os dois brindaram e viraram os respectivos copos num só gole. Júlia se levantou e, quando me viu, fez cara de triste e disse que era uma pena que eu tivesse perdido o relato dela.
– (…)
– Perguntei na hora que história foi essa que ela contou, é claro. Ela respondeu, Uma que acabei de inventar. Sobre uma menina que foge durantes horas de um tigre através de ruas desertas em São Paulo. Ela não o vê, mas sente seu odor, ouve seus passos e treme com seus rugidos. Foge por uma manhã e por uma tarde inteiras, mas de noite começa a cansar. Quando finalmente está para ser devorada, sentindo o calor do bafo do tigre no pescoço, se vira e não vê nenhum tigre, somente uma rua iluminada pela lua. Então a menina sorri. Na verdade nunca acreditou que pudesse haver tigres soltos em São Paulo. O tempo todo ele foi somente um perigo que ela mesma inventou, para se obrigar a ser corajosa e conhecer todas as ruas da cidade. Só que, imaginativa como é, a menina inventou tão bem o perigo que precisou fechar os olhos e respirar fundo para se lembrar de que o tigre não passava disso, imaginação.
-(…)
– Júlia falou que sonhava com essa história fazia muito tempo, e nunca tinha narrado a ninguém. Perguntei porque ela tanto mexia as mãos e fazia caras e caretas se o senhor era cego. Ela fez cara de surpresa e retrucou gentilmente que a cega devia ser eu, já que alguém que sorri como ele sorriu ao fim de uma história com meninas e tigres nas ruas de São Paulo jamais poderia ser cego.
Entrevistado Nº 3:
Felipe Susuki,
22 anos, recém-bacharelado em Administração pela PUC-SP, trabalha na empresa de importação de rodas de alumínio do pai.
21 de fevereiro de 2017,
São Paulo-SP.
Entrevista realizada numa mesa para duas pessoas da Lanchonete Nova Pauliceia, Consolação.
16h20.
[Encontro combinado para as 16h. Felipe chegou atrasado. Desceu de sua moto e veio correndo me cumprimentar, pedindo desculpas. Pôs o capacete em cima da mesa, à sua direita. Manteve a jaqueta de motociclista durante a entrevista. Não quis café ou cerveja. Pediu três baurus, apenas um dos quais comeu inteiro. Arranjou as sobras dos outros dois, formadas basicamente por tomates, em um desenho primitivo de rosto no seu prato, utilizando ketchup para o que eu imaginei serem os cabelos. Talvez fosse um rosto feminino.]
– (…)
– Cara, eu a conheci no carnaval do ano passado. Aqui em São Paulo. Dei sorte de ter resolvido passar aquele período por aqui. Me disse que pouco antes tinha dado uma volta pela Argentina, ou foi Uruguai, agora tô em dúvida. Talvez os dois. Já depois que saiu daqui, não tenho ideia. Você deve estar sabendo melhor que eu.
– (…)
– É. Imagino que ainda hoje seja difícil descobrir onde está alguém que não quer ser encontrado. Bom, São Paulo, nos próximos dias, pode ser com sorte o lugar para você encontrar a sua pessoa desaparecida. O nosso carnaval tá ficando bacana, não sei se você tá sabendo. Já pulou festa aqui?
– (…)
– Saquei. É, pra mim foi novo, acho que pra Júlia também, pelo que ela me disse. Eu sempre ia com minha família pro interior nessa época. Churrascão no sítio, toda a parentada, aquela coisa. Ano passado, fiz uma revolta. Digo, revoltinha. Porque a única coisa que fiz mesmo foi me despedir deles, colocar minha coisas numa mochila e sair pra passar uns dias no quarto de visitas do apê de um brother que fica ali na Vila Madalena. O esquema seria diariamente primeiro beber em casa, depois sair pra rua, aí beber mais e por fim voltar só pra capotar na cama. Com sorte, acompanhado. Se não, foda-se, ainda é bom. Com um pouco de fígado, dá pra manter o ritmo por uns dias.
– (…)
– Ah, a Júlia, sim. Já era segunda-feira. Eu tava emendando uma ressaca atrás da outra. Tínhamos começado o dia nos blocos da Vila Madá mas, quando percebi, o meu grupo tava indo em direção ao centro, onde estava melhor. Tava super cheio, mas foi só chegar lá, nem tinha dado quinze minutos, começou a chover. Não chuvinha, foi um pé-d’água mesmo. Aí, meu amigo, foi um corre-corre. Algumas pessoas se apertaram debaixo de marquises, uns outros correram pro metrô, mas descobri que os mais alegres aproveitaram pra dançar. Também os mais bêbados.
– (…)
– Eu dancei, é claro. Ao menos literalmente. A minha fantasia era de papelão e não durou nada, já tava desfalecendo, de forma que eu parecia ridículo. A verdade é que eu não tava nem aí. A minha maior preocupação em cada bloco sempre foi a de conseguir a bebida com melhor custo-benefício, nisso modéstia à parte sou bom mesmo, estudei tanto na faculdade como no bar. E quase sempre a escolhida nesse critério era a catuaba. O meu copo de plástico tava vazio, ao menos de catuaba, água tinha aos montes. Me separei do grupo para ir atrás de alguém que vendesse, camelô, bar, quem fosse. O ruim era que a tempestade só piorava, e por incrível que pareça quanto mais forte a chuva batia em mim, encharcando meus cabelos, minhas roupas, o resto da fantasia, mais sede aquilo me dava. Foda que todos os vendedores pareciam ter sumido. Pô, sei que o tempo tava ruim, mas sempre tem cliente. Ninguém vai crescer na vida trabalhando assim, caralho.
– (…)
– A Júlia, sim, a Júlia. Desculpa. Tenho esse problema de me perder nas histórias. Digressão, meu professor do cursinho chamava. Voltando ao carnaval. Começou a passar pela minha cabeça a possibilidade de desistir, largar mão, pegar o metrô ou Uber que fosse naquele toró. Voltar pra casa do meu brother, foda-se. Sem beber fica difícil. Até que eu vejo uma menina dançando sozinha no meio da avenida, com uma garrafa cheinha e resplandecente de catuaba aos seus pés. Parecia estar em seu próprio sistema solar. Nem tinha mais música tocando por perto, os trios já tavam desligados, mas isso não aparentava ser problema.
– (…)
– Sim, era ela, Júlia, claro. Como você sabe?
– (…)
– É, acho que seria óbvio para quem a conhece. Fui em sua direção. Ela olhou pra mim, levantou a garrafa e um outro copo que tirou não sei de onde e me disse algo. Deve ter perguntado se eu aceitava brindar com ela, tava difícil de ouvir com o dilúvio e tanta correria. Ela deve ter percebido que eu não tinha entendido, pois ofereceu o copo de novo, agora sorrindo. Ainda bem que foi ela quem ofertou. A verdade é que eu tava tímido.
– (…)
– Juro. Já fiz muita coisa na vida, mas aquela figura exótica me intimidou. Não sabia se era doida, dançando daquele jeito, levantando os braços toda descoordenada enquanto todo mundo passava olhando estranho. Tenho um pouco de medo de gente louca, não me leve a mal, é só que aqui em São Paulo é cheio deles e tem horas que você dá brecha para um e o sujeito, ou sujeita, tem de todos os tipos e gêneros, não te larga mais.
– (…)
– Aceitei, é claro. Como poderia recusar com um sorriso daqueles? Ela já dançava com os dois copos pra cima, o meu e o dela, bem esquisitinha, e eu fui chegando perto. Antes que pudesse pegar um dos copos ela veio em minha direção e me beijou, não disse nada, só beijou mesmo, e foi um beijo melhor do que qualquer outro que eu tivesse dado ou recebido naquele carnaval.
– (…)
– Nem dissemos mais nada. Naquela altura não sabia ainda qual era seu nome. Depois me dei conta de que não tinha beijado antes na vida uma Júlia. Se sim, nenhuma daquele modo. Seu hálito tinha algo diferente. Aquele gosto certamente não era catuaba, e aliás não me lembrava de nada que conhecesse. Depois do que pareceu pouco tempo mas ela mais tarde me garantiu ter sido muito, ela se afastou, só um pouco, só o suficiente para a gente trocar mais do que algumas palavras mal formuladas. Me perguntou se eu queria um copo. Estava sedento, com a garganta já em erupção, e desejando mais álcool. Implorei que sim, que ela me desse um pouco do que a deixava daquele jeito. Quer saber o que tinha na garrafa?
– (…)
– Água da chuva com açúcar e corante.
– (…)
– Eu sorri. Depois, é claro, pegamos um Uber. Pro apê do meu brother. Disse que isso foi na segunda-feira, né? Pois bem. Passou a terça, passou a quarta-feira de cinzas, não vi nada. Ficamos até a manhã da sexta só trepando. Nem saí pra rua nos dias seguintes, só saía mesmo era do quarto pra tomar água da torneira, meu corpo de vez em quando ficava desidratado. Também pra uns banhos de madrugada e pruns lanches furtivos, é claro. Trazia pro quarto sanduíches pra comer com a Júlia, os dois pelados. A gente tirava um cochilo de meia-hora só pra digestão, então continuava. Meus amigos me enchiam o saco, me chamavam pra sair, até começaram a batucar uns sambas na porta enquanto a gente trepava. Eu caguei pra eles.
– (…)
– Já tava mais do que apaixonado quando ela sumiu na sexta. Fui tomar banho e só encontrei na cama, a mesma cama do quarto de visitas do meu brother onde tava fazia dias suando e trepando, um bilhete dela, se despedindo. Mencionava algo sobre resolver uma velha dívida que tinha que resolver. Depois agradecia, deixava um beijinho, e tchau. Sem número, sem Facebook, sem nada. Eu não tinha pedido nada disso antes a ela porque nunca achei que iria sumir assim.
– (…)
– E vejo que você infelizmente não vai ser capaz de me ajudar. Pois está tão ciente do paradeiro dela quanto eu. Ou seja, nada.
– (…)
– Bom. Vou nessa. Foi bom relembrar, de qualquer jeito. Se você a encontrar por aí, nesse carnaval ou depois, manda um beijo? Avisa que o bilhete tá guardado.
Entrevistado Nº 4:
Carla Callado,
52 anos, graduação incompleta em Geografia pela USP, ex-dona de casa, atual dona do Sebo do Mandarim.
22 de março de 2017,
Guarujá-SP.
Entrevista realizada no café do Sebo do Mandarim, Centro.
18h12.
[Carla me recebeu em seu sebo com grande simpatia. Pediu para eu esperar o último cliente sair antes de fechar as portas e conversar a sós. Tinha pintado as unhas de cinza. Enquanto fazia um café na prensa francesa para nós dois, disse que sentia falta dos cinco gatos que povoaram o sebo durante anos. “Companhias mais frequentes e infinitamente mais aprazíveis que as humanas, meu filho”. Ao longo dos anos, todos morreram. Carla decidiu que não adotaria novos pois os espíritos dos cinco ainda caminhavam ali, pouco dispostos, segundo ela, a aceitar cria nova no lugar.]
– (…)
– Sim, ela esteve por aqui. Mas já foi. Qual a sua relação com ela?
– (…)
– Entendo. Não imaginava. O que você quer saber dela, mesmo?
– (…)
– Ah…foi rápida. Júlia me disse que nunca tinha vindo no Guarujá. E que tinha me descoberto por causa do meu cartão. Digo, descoberto o sebo. O cartão, claro, sendo o cartão do sebo. Ela disse que o achou na capital, durante o carnaval, dentro de uma garrafa de catuaba vazia largada no chão. Apareceu aqui, sorriso de um canto ao outro da boca, enquanto segurava o cartão do sebo com as duas mãos.
– (…)
– Ela notou que o meu cartão não deixava claro que o estabelecimento se tratava de um sebo. Notou também que não tinha número de telefone. Faz seis anos que não tenho um aparelho, celular nunca nem encostei. Vivo na pré-história, dizem. Também não coloquei no cartão imagens de livros. É todo em branco só com meu nome e o endereço.
– (…)
– Porque se ler é um ato de pura curiosidade, somente um sebo poderia se anular assim em sua divulgação e ainda esperar visitas, não? Júlia entendeu. E me visitou. Gastou umas três horas fuçando as estantes, mas não parou para esmiuçar cada volume. Observei-a discretamente durante esse tempo, gosto de entender os gostos dos meu clientes. Dos clássicos ela só viu as lombadas. Dos contemporâneos, em especial os brasileiros, idem…foi no entanto a única pessoa que vi até hoje gastar o tempo que gastou com os mexicanos. Rulfo, Yáñes, Fuentes, Reyes e Paz, claro, o imenso Paz. Bolaño também, apesar de não ser mexicano de nascença. Esse também ficou muito famoso, mesmo quem não sabe o que tá lendo lê e depois diz que gostou, que entendeu.
– (…)
– Ela ficou radiante de eu ter uma prateleira só para eles. Parece que dividimos, eu e ela, esse amor. Quando perguntei se ela tinha estudado no México, feito alguma viagem de estudos, quem sabe ganhado uma bolsa, ela disse que não, nunca tinha pisado no país, e justamente por isso lia tanto seus autores. Para sentir pelas descrições de quem cresceu naquela terra o cheiro de Yucatán, senti-lo melhor do que alguém que lá tenha ido sem o ouvido mexicano, o olhar mexicano, o nariz mexicano. Enquanto dizia essas palavras, ela arregalava os olhos, marcando com um levantar das sobrancelhas cada sílaba, me-xi-ca-no. Depois desse tempo todo, optou por levar somente um volume de poetas campesinos dos anos 30 ao 50 que jamais foram traduzidos para o português. Nem barganhou o preço. Disse que o resto já tinha ou tinha lido, mas esse ela nunca tinha visto. Então me perguntou se eu faria o favor de acompanhá-la à praia. Fazia muitos anos que não via o mar, me disse, e não queria estar sozinha no reencontro.
– (…)
– Pegamos um táxi e fomos à praia do Tombo. O sol estava prestes a se pôr. Sempre achei uma pena que aqui no Atlântico não possamos vê-lo entrando na água. Pensei em sentar num bar, pedir uma cerveja. Mas Júlia queria ficar com os pés na areia. Mais tarde poderíamos beber quanto quiséssemos, disse. Ficamos as duas em pé, naquela faixa onde a água molha a areia em seus vais-e-vens. Perguntei se ela não queria de fato adentrar no mar, molhar os joelhos, a saia, a blusa, não me parecia que ela tivesse vindo com roupa de banho ou que sequer usasse um biquíni por baixo. Júlia me respondeu enfaticamente que não. Disse que o local perfeito era ali onde estávamos, onde cada vinda do mar trazia limpeza e cada volta carregava a sujeira, nos deixando com água em volta dos pés só o suficiente para que não nos perdêssemos na imensidão do oceano.
– (…)
– Pior que depois daquele entardecer passei a achar que, assim como Júlia, fazia muito tempo que eu não via o mar, apesar de todo dia passar em frente à praia.
– (…)
– …
– (…)
– O que eu entendo dela? Entendo que ela está em busca de algo.
– (…)
– Não saberia dizer. Naquele mesmo dia, mais tarde, ela me disse que sonha em escrever um livro. Alguns não têm uma vida marcante, mas assim a tornam quando a põem no papel. Talvez Júlia precise apenas registrar as coisas como foram, sem tirar nem pôr, para ter o seu romance.
Entrevistado Nº 5:
Roberto Nigri,
71 anos, formação técnica em Usinagem, é fazendeiro há 42 anos.
13 de maio de 2017,
Território pertencente ao munícipio de Vera Cruz-SP.
Entrevista realizada na varanda da casa da Fazenda Nova Alsácia, de propriedade da família Nigri.
09h30.
[Roberto trouxe café para os dois num bule de ferro fundido que herdou dos pais. Fala manso, a sua autoridade não vem de grossura na voz. No período de cerca de trinta minutos que durou a entrevista, ele acendeu dois cigarros palheiros, tendo me ofertado um deles. Agradeci e recusei, apesar de estar sem os meus Dunhill vermelhos. Quase não travamos contato visual. Ambos preferiram observar pontos indistintos no horizonte nublado.]
– (…)
– Isso foi tudo que deu para saber da Júlia? Se for, melhor desistir de vez dessa busca.
– (…)
– Ah, sim. É possível, filho. Melhor seguir seu instinto, antes isso que largar mão.
– (…)
– Sabe o que é pior? Toda essa história, esse desaparecimento, eu fico incomodado, um pouco preocupado, até mesmo surpreso, mas não deveria.
– (…)
– Ela mudou tanto, desde a viagem a Santiago junto à mãe. Foi em um desses anos todos que você tava sumido, não ligava, não aparecia. Pensando bem, devo ter criado mal meus filhos. Primeiro você. Aparecia a cada dois meses no início. Pouco depois, a cada semestre, então a cada ano. Por fim, nos abandonou de vez. Tantos anos sem dar sinal de vida, cheguei a pensar que tivesse morrido. Agora a outra…
– (…)
– Entenda, a sua irmã nunca tinha estado muito longe daqui. Vera Cruz, Garça, no máximo Marília. Passarinho que não voa longe. Você de vez em quando, lembro bem, dava suas voltas por aí. Já eu e sua mãe viajamos muito nos nossos dias. Da capital pro interior, então de volta, por outro caminho. Pro Nordeste, até Fortaleza. Pra Argentina, nos pampas. Pantanal. Tudo de carro. Sem tanto dinheiro, mas com disposição. Sua mãe falava bem o castelhano, você talvez se lembre. Nos ajudou muito. Só mais tarde foi que nos assentamos por aqui. Mesmo quando estava sozinho e conheci a mãe de Júlia, naquele mês de outubro, ela nem pensou noutro plano. Veio para cá com tudo que ainda tinha e ficou até o fim.
– (…)
– Sim, mas hoje essa terra que você vê é a minha vida. Não sinto mais vontade de sair para a cidade. Só quando preciso ver algo urgente no mercado, resolver um problema na caminhonete, isso quando não tem funcionário para fazer isso. Sua mãe também tinha criado essas raízes antes de adoecer. Mal queria sair. Ela, que adorava ir ao cinema, nem disso fazia mais questão. Hum. No início achei estranho. Não sabia se a gente estava com problema na cabeça, filho. Essas coisas chegam assim e te pegam sem aviso. Os anos foram passando, você nasceu, cresceu e foi embora. Quando achei que finalmente ia ficar sozinho, só eu e as vacas, veio minha segunda mulher e, por causa dela, sua irmã. Entendi que é assim mesmo. A gente se apega à terra. É dela que nossa família passou a tirar nossa vida. Você nasceu da terra, filho, e a tem no sangue, mesmo que tenha se esquecido, mesmo que tenha se afastado. Sua irmã sabia bem disso. Vivia no meio dos animais, olhando para o mato, até ficava com vergonha quando alguém vinha tomar um café. Igual a bicho. Mas bicho esperto. Pois a única coisa que pedia de fora era livro. O dono da livraria lá na cidade já sabia e ligava para a mãe dela toda vez que achava que tinha chegado algo novo.
– (…)
– Lembro de quando a vida dela era o tal bruxinho. Há…ela não queria saber de outra coisa. Quando chegava um livro novo, era um mês com o livro a tiracolo. A mãe dela perguntava se ela já não tinha lido. Ela respondia que sim, mas só três vezes. Um dia, creio ela tinha uns quinze. Disse que faria uma surpresa à noite, e que a gente passasse o dia onde fosse, mas longe da casa. Ela chamou aquela amiga da cidade, a Raquel, que passava as férias inteiras aqui na fazenda, para ajudar. Quando voltamos, já com a lua cheia no céu, ela foi esperta e marcou aquilo para uma noite daquelas, encontramos a nossa casa transformada num castelo de bruxas. Nos obrigou a pôr na cabeça uns chapéus pontudos e a vestir roupas engraçadas que fez com papel barato. Aí disse, toda séria, que a nossa nossa sala de jantar era agora o Salão Comunal. Sobre a mesa, várias comidas que elas mesmas fizeram, eu mesmo nunca tinha visto nada parecido, nem sei como elas arranjaram os ingredientes por aqui perto. Uns doces diferentes, também, depois da janta. Coloridos. Deve ter dado muito trabalho. Eu e as mulheres com quem vivi nunca fomos muito de Cristo, você sabe, é até um alívio ficar meio que longe de tudo porque assim não esperam que eu apareça na igreja aos domingos. Se a sua avó estivesse viva para ver aquilo…
– (…)
– Umas fitas pretas caindo por toda parte. A Júlia até colocou uns morcegos dentro das panelas para enfeitar. Minha mãezinha, Deus a tenha, ia sair benzendo e correndo para chamar o padre. As coisas mudam, parece.
– (…)
– Pois bem. Depois que ela fez essa recepção para a gente, no tal do Salão Comunal, deve ter gastado ali todo o amor que tinha pelo bruxinho. Tudo que a mãe dela trouxe dali para frente ela não queria mais, até durava um, dois dias com o livro debaixo do braço, como sempre gostou de fazer, mas depois largava. Achei que tivesse passado o interesse dela pelos livros, vai saber, talvez estivesse apaixonada, o amor tem esse efeito com a gente, nos faz largar nossos hábitos mais vivos. Eu e a mãe estranhamos, claro.
– (…)
– O dono da livraria tinha até parado de avisar das novidades. Um dia, estávamos os três tomando sopa de cebola, receita de sua avó materna, era uma noite de julho. A Júlia perguntou o que tinha em casa de poesia. Eu até gosto, mas sempre fui de absorver na voz dos outros, jamais com os próprios olhos. A mãe disse que jovem tinha lido alguns clássicos, Bilac, Drummond, Bandeira, mas só. Não lia nada fazia tempo. Nem sabia o que tinha guardado ou não, era capaz de tudo ter ficado pelos armários das pensões em que morou com vinte e poucos anos. No dia seguinte, se lembrou do baú onde guardava toda as coisas em que não tinha mais interesse mas era incapaz de jogar fora. Todo mundo tem um pouco disso. No meio das fotos e roupas antigas, lá estava um volume de Cora Coralina. Tinha uns quarenta e cinco anos de idade. A mãe dela leu mocinha e sempre o guardou pelas memórias que vinham quando sentia o cheiro das páginas. A Júlia agradeceu, educada, e se trancou no quarto com o velho volume. Tinha algum tempo já que a gente não via ela fazer isso. Hoje é óbvio para mim que tudo começou ali. Logo doou o que tinha de livro para a Raquel, que depois pouco vi aqui em casa, e em duas semanas já tinha adquirido tudo em matéria de poesia que a livraria da cidade vendia. Começou a escrever os próprios. Uns sonetinhos bem bestas, ela mesma dizia. A mãe também achava, mas gostávamos de conhecer suas palavras, ouvir sua voz. Ela vinha, parecendo um animal tímido, e pedia para eu e a mãe sermos sua plateia. Toda manhã ela lia o que tinha escrito na noite anterior. Eu até queria que ela saísse mais, conhecesse o mundo, já tinha uns dezoito anos, porém ela não queria, sua vida parecia estar contida naqueles livros. Nós dois éramos seus únicos ouvintes. Digo ouvintes mesmo, não leitores, porque ela nunca nos deixou ler. Sempre ouvir, só aceitava que ouvíssemos de seus lábios, nos explicando que outras vozes criariam outras intonações que criariam outros poemas que não o dela. De vez em quando entendíamos, mas a maior parte do tempo, não. Claro que não era por isso que deixávamos de sorrir e parabenizar ao fim de cada leitura. Não sabia o que Júlia tinha, meu filho, mas aquilo mexia com ela o suficiente para mexer conosco também.
– (…)
– Pouco depois que ela fez dezenove, começou a obsessão com Santiago, do Chile. Nunca tinha ido nem a São Paulo, mas resolveu que precisava ir a Santiago. Nem que fosse sozinha. Eu fui absolutamente contra, a menina mal sabia se virar. A mãe também pensou assim. A Júlia brigava, tentava levantar a voz, mas logo voltava chorando para o quarto. Passava algumas semanas sem tocar no assunto. Então pedia de novo, e tudo se repetia. Eu a amava mais que tudo, odiava ver minha filha assim, mas não tinha escolha. Sua mãe concordava comigo. Ao menos no início. Ela também mudou. Fui notando que esse momento da manhã no qual Júlia vinha com um poema passou aos poucos a ser para ela o mais importante do dia. Ela brilhava de ansiedade enquanto esperava, fechando os olhos para ouvir melhor as palavras. Houve dias em que ela até perdia o apetite. Ao invés de tomar café-da-manhã ia para a varanda com o cigarro em mãos passar uma meia-hora, até que Júlia arrumasse a mesa. Aprendi a não incomodá-la nesses momentos. Uma noite, depois de um pouco de vinho, ela disse, talvez falando para mim, talvez para as paredes, que seu pai lia Neruda para ela quando era adolescente. Que ele lia Neruda toda noite quando ela teve meningite e quase morreu. Que ele tinha feito questão na sua juventude, contra a recomendação de todos os amigos próximos, de ir ao Pacaembu quando Neruda veio discursar junto ao Prestes. A família de sua mãe sempre odiou comunistas e o pai escondeu esse lado durante muitos anos da filha, escondeu tanto que ela mesma já nem se lembrava. As palavras de Júlia, no entanto, foram resgatando isso, pouco a pouco, pouco a pouco. Decidiu no fim que iria junto com a filha para Santiago. Pelo pai que faleceu há tantos anos, e cuja memória ela tinha enterrado profundamente. Ir a Santiago, ela dizia, seria o reencontro que ele merecia. Passaram duas semanas direto na cidade, nem quiseram ver o deserto. Minha filha voltou outra. Não permaneceu nem mais um mês na fazenda. Assim que chegou, ficou duas semanas de cama, não sei se mal do corpo ou da cabeça, talvez dos dois. Melhorando, só conseguia andar de um lado para o outro, de um lado para o outro, até começou a fumar. Um dia, eu e sua mãe estávamos na cidade. Voltamos e ela tinha sumido. Apenas uma folha de caderno em cima de sua escrivaninha. Deixou quase tudo de poesia no quarto, tá lá intacto até agora. Nem quisemos mexer muito. A mãe adoeceu. Foi quando fui atrás de você. Não soube como lidar sozinho, via minha mulher de cama, tão diferente, ela também voltou outra do Chile, de tão pesada que era voltou leve, leve até o leito de morte. Deus a tenha, odeio falar sobre isso. Até me altero. Porque Júlia não estava presente, porque ela não quis voltar, nem sequer para o enterro da mãe?
– (…)
– Todo dia rezo pelas duas. Rezo, filho, eu, que nunca fui de Cristo, rezo porque é só o que tenho. Eu que nunca fui religioso, não tenho as palavras da minha filha, nem as lembranças da minha mulher. Ela que passou também a ler Neruda todo dia até morrer, morreu cantando baixinho umas palavras desencontradas, que falavam de Machu Picchu, da América, de Machu Picchu. Nunca entendi aquilo, mas ela entendia. Sem ter nada, passei a rezar, e agora rezo, filho.
– (…)
– Rezo para que Júlia encontre o que procura. Rezo para que volte, tendo encontrado. Rezo para que volte com o livro, o livro que ela menciona na página miserável de caderno que nos deixou. Rezo para que em sua voz eu ouça um último poema, na dedicatória do livro que ela nos abandonou para escrever.
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[conto finalizado em agosto de 2017]